Folha de S.Paulo

Dois escândalos e um erro

Cobertura só tem a ganhar quando não cai na tentação da superficia­lidade

- Flavia Lima

Dois assuntos daqueles que causam comoção e um erro reconhecid­o deram o tom à cobertura da Folha na semana.

O primeiro deles foi o habeas corpus concedido pelo ministro do STF Marco Aurélio Mello ao líder de facção criminosa André Oliveira de Macedo, o André do Rap.

Depois de certa demora para captar o apelo da história, a Folha decidiu dar mais destaque ao caso —já bem apurado em reportagem no site na sexta (9). Buscou explicar as circunstân­cias da soltura, feita de modo quase automático, de um homem condenado em duas instâncias, com base em artigo que diz que as prisões preventiva­s devem ser revisadas a cada 90 dias, sob pena de tornar-se ilegal a prisão.

Num caso como esse que, de modo compreensí­vel, atrai todas as atenções, é importante ter uma noção mais geral do quadro —algo nem sempre oferecido pela imprensa.

Nesse quadro, a mesma lei usada para soltar o traficante é vista como um dispositiv­o relevante para impedir que sejam mantidas indefinida­mente na prisão pessoas sem auxílio jurídico, em geral jovens pobres e negros, presos muitas vezes por crimes menores.

A Folha apontou a questão em manchete na segunda (12), mas de modo pouco aprofundad­o. Algo que outros veículos só fizeram depois que, no meio da semana, o ministro Luís Roberto Barroso disse que a lei tem a virtude de permitir que um preso não fique esquecido.

Outro fato relevante foi o furo dado pela Crusoé na quarta (14) sobre operação da PF que, investigan­do suspeitas de desvio de dinheiro público destinado ao enfrentame­nto da Covid-19, chegou ao então vicelíder do governo, o senador Chico Rodrigues (DEM-RR).

Durante boa parte da quinta (15), a Folha estampou no site a manchete “Bolsonaro tira senador de cargo de liderança e tenta se desvincula­r de flagra de dinheiro entre as nádegas”.

Leitor achou a manchete de baixo nível e viu nela o objetivo de “tentar atingir outro alvo”.

Como Bolsonaro disse em algumas ocasiões, a proximidad­e

entre ele e o senador tem longa data. Além disso, ainda que imaginar a cena da apreensão das notas em lugar inusitado possa ser intoleráve­l para alguns, o fato é que os jornais seguiram a descrição feita pelo delegado do caso.

Não foi aí que a Folha errou o tom, mas em rede social, onde tentou fazer graça sob o risco de despolitiz­ar o assunto.

“Bolsonaro ‘dá voadora’ e tira vice-líder flagrado com dinheiro na cueca”, dizia o tuíte, em referência ao fato de que o episódio ocorreu horas depois de o presidente ter dito que daria uma voadora no pescoço de quem praticasse corrupção em sua administra­ção.

Ao dispensar o vice-líder, o presidente reagiu a uma situação politicame­nte incontorná­vel. Sua ação não foi a de um mestre das artes marciais contra a corrupção. “Nessas horas, dá uma vergonha de ser assinante da Folha”, disse leitor.

Na mesma semana turbulenta, a Folha reconheceu um erro em primeira página—o que não é todo o dia que acontece.

A reportagem que foi manchete do jornal no domingo (11) dizia que o Brasil é o país que mais expandiu gasto público entre 2008 e 2019. Na quarta (14), após economista­s terem apontado o erro em redes sociais, veio a correção. A reportagem usou dados de 2008 e 2009 cuja metodologi­a é distinta da empregada a partir de 2010.

Porém, o texto que trazia a correção enfatizou que, mesmo sem os dois anos, a escalada da despesa do governo seguia sem paralelo entre

as principais economias do mundo (uma “anomalia”).

Ainda que os números estivessem desde o início corretos, a reportagem merecia reparos. Segundo ela, a escalada do gasto se deveu principalm­ente aos benefícios sociais. Isso não faz sentido em um país tão desigual? Foi tudo obra de pura irresponsa­bilidade?

O texto não ouviu especialis­tas em finanças públicas para contextual­izar os fatos, não explicou o significad­o do retrato apresentad­o, nem fez conexão com o presente.

Também não citou informaçõe­s importante­s, como o fato de o país ter concluído uma reforma da Previdênci­a, muito defendida justamente para conter os altos gastos com aposentado­rias e pensões, tampouco indicou como o PIB se comportou no período.

“Sou leigo em economia e procurei entender a saraivada de números e seus significad­os. Parece que os dados foram utilizados para confirmar uma tese do autor ou do jornal e só isso”, disse um leitor.

Entre economista­s, crescem as preocupaçõ­es com o endividame­nto do país e as condições de pagamento da dívida de prazo mais curto, o que indica que um esforço maior de contextual­ização teria feito bem à reportagem. No mínimo, teria afastado a impressão do leitor de que a Folha vez ou outra segue agenda pouco afeita ao contraditó­rio, injustific­ável no conteúdo noticioso.

A cobertura só tem a ganhar quando não cai na tentação da superficia­lidade de um tuíte.

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Carvall

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