Folha de S.Paulo

Anomalia pressiona inflação de alimentos

Combinação entre real desvaloriz­ado e alta na cotação de matériaspr­imas agrícolas eleva preço da comida no Brasil, diz economista

- Alexandre Mendonça de Barros Alexa Salomão e Eduardo Cucolo

O Brasil vive hoje uma anomalia, afirma o economista Alexandre Mendonça de Barros. Há uma forte demanda chinesa por matérias-primas —ou commoditie­s, para usar o termo em inglês comum no mercado. Assim os exportador­es brasileiro­s, especialme­nte os de produtos agrícolas, têm sido beneficiad­os por um verdadeiro mini boom na demanda.

Ao mesmo tempo, porém, o real sofre uma violenta desvaloriz­ação —mas deveria ocorrer o contrário.

“Quando a commoditie sobe de valor, e você tem um ganho de termos de troca, em um regime de câmbio flexível o real se valoriza. Só que o real não está se valorizand­o”, diz ele.

Essa situação exótica, afirma o economista, indica que boa parte do ganho com as exportaçõe­s não está sendo trazida para o Brasil. Uma parcela foi usada para pagar dívidas, afirma. Outra, porém, simplesmen­te fica lá fora.

E aí, ele identifica duas razões para essa decisão: os juros muito baixos no Brasil e o início de uma desconfian­ça enorme com a política fiscal.

Diferentem­ente de outras crises, que parecem distantes da vida real, essa distorção entrou para a rotina do brasileiro, principalm­ente dos mais pobres. Impulsiono­u uma forte alta no preço da comida, elevando a inflação de alimentos.

Em apresentaç­ões, o sr. tem dito que o Brasil está vivendo, em especial no agronegóci­o, uma espécie de novo boom das commoditie­s. Como é isso? Há dois fundamento­s macroeconô­micos lá fora que estão levando ao que eu chamo de miniciclo de commoditie­s. Eu queria por ênfase no mini, porque não tem nada parecido com a era Lula. Aquele era um momento de globalizaç­ão, de forte cresciment­o econômico, de uma liquidez absurda. A gente estava vendo outro padrão internacio­nal.

Provavelme­nte no ano que vem, vamos ter uma retomada da atividade econômica no mundo. Mas vamos crescer porque o mundo diminuiu de tamanho neste ano. É como voltar ao final de 2019. A gente já nota uma retomada nos preços da soja, nosso principal produto exportado. No auge da pandemia, estava US$ 8,40 por bushel [unidade de medida internacio­nal que equivale a quase metade uma saca brasileira de 60kg]. Bateu US$ 10,40 na semana passada.

A inflação de alimentos apareceu na China porque o segundo trimestre já marcou uma retomada de cresciment­o. Então, por uma certa analogia, os macroecono­mistas olham para o que está acontecend­o na China e falam: “puxa, vai vir uma onda de demanda de commoditie­s e isso deve impulsiona­r os preços”.

Existe uma coisa que a gente aprendeu durante a pandemia, no caso dos alimentos: para alguns produtos, o consumo por refeição fora de casa é maior que dentro de casa. No dia a dia, você come menos carne, toma menos café. A retomada da atividade econômica tem uma pressão de maior demanda, seja porque a renda melhora, o emprego melhora, seja porque você volta à normalidad­e, e isso afeta o sistema de consumo.

É a retomada do ciclo econômico puxando o preço de commoditie­s.

Uma segunda variável que se mostra muito consistent­e em estudos econométri­cos é que, normalment­e, quando o dólar se deprecia, as commoditie­s sobem de preço em dólar. A moeda americana se depreciou no mundo. A gente viu esse contágio pular para as commoditie­s. As metálicas e as agrícolas andaram. Os fundos de investimen­to voltaram a comprar mais commoditie­s agrícolas.

A combinação dessas duas coisas vem fazendo com que os preços de commoditie­s subam em dólar de uma maneira muito relevante.

O que isso representa para

o Brasil? A gente diz que o Brasil está vivendo um choque de termos de troca, porque os produtos que nós exportamos estão se valorizand­o. Na era Lula, naquele boom de commoditie­s, muitos economista­s calcularam que até um quarto do cresciment­o se devia a esse ganho nos termos de troca.

Neste momento, porém, há uma anomalia no Brasil. Quando a commoditie sobe de valor, e você tem um ganho de termos de troca, em um regime de câmbio flexível o real se valoriza. Só que o real não está se valorizand­o. É como se o choque de commoditie­s se ampliasse para dentro do país. Essa é uma coisa estranha.

E por que o real não está se

valorizand­o? A gente vê duas razões. Para reforçar essa questão: a soja voltou para US$ 10,40. No auge daquele boom anterior de commoditie­s, chegou a US$ 16 por bushel. O milho está se aproximand­o de US$ 4. Ele chegou a valer US$ 7 naquele outro momento. Mas, em reais, os preços nunca chegaram ao que está acontecend­o hoje, porque, naquela época, o real estava muito forte. O que está acontecend­o é que o preço está subindo em dólar e também em reais, muito fortemente.

De onde vem essa fraqueza

do real? Primeiro, porque estamos com uma Selic de 2% e uma inflação que vai ser de 2,5%, 3% —portanto a taxa real de juro é negativa. Qual a implicação disso? Não há entrada de dólar para arbitrar diferencia­l de juros entre Brasil e EUA e Europa.

A gente também está vendo que muitas empresas estão matando suas dívidas em dólar lá fora e tomando dívidas em reais. Ou seja, eu realizo a exportação, mas não internaliz­o o mesmo volume de dólares.

A outra razão é que estamos indo para uma situação fiscal extremamen­te complicada. Isso eleva a percepção de risco e, com isso, o real se mantém depreciado.

É uma das coisas mais impression­antes que eu já vi. Se você faz uma conta da renda bruta dos principais produtos agrícolas brasileiro­s, que representa­m quase 90% da renda agrícola, por quatro anos, de 2016 e 2019, ficou em R$ 500 bilhões. Neste ano, estou estimando R$ 660 bilhões. Se a safra do ano que vem for boa, pode ser R$ 750 bilhões.

Estamos tendo um aporte de renda em dois anos, não só porque o preço em dólar subiu e o câmbio está depreciado, mas o fato é que é a primeira vez na história do país que você tem um choque de termos de troca relevante —porque o preço em dólar das commoditie­s está subindo— e o real continua depreciado, o que mantém os preços em reais dessas commoditie­s extremamen­te elevados, nos patamares mais altos já registrado­s.

Se o nosso exportador está ganhando tanto dinheiro e não estamos vendo esse sinal no câmbio, cadê o dinheiro? Você tem dois movimentos. Quem está exportando está deixando um pedaço dos dólares lá fora, e também deixou de vir dólar para arbitrar taxa de juros. A combinação disso dá essa coisa exótica. É por isso que a inflação de alimentos é tão forte. Estamos vendo inflação de metálicos, de químicos. A gente está percebendo que tem um certo impulso na inflação decorrente dessa situação inusitada.

Isso seria apenas uma falta de atração da economia local ou início de crise de confiança?

Uma misturadas duas coisas. Neste momento não atrai porque o juro é muito baixo, mas isso vai deixar de ser verdade no futuro. De outro lado, éoiníc iode uma desconfian­ça enorme com apolítica fiscal.

Parte de termos preços agrícolas tão altos e uma inflação tão alta também é consequênc­ia de um voucher muito forte. Ele permitiu pagar preços de alimentos muito elevados. Agente exportou mui toe, ao mesmo tempo, o mercado interno foi podendo pagar preços elevados de alimento, reforçando esse ciclo externo.

Até dois meses atrás os preços agrícolas estavam caindo no mundo todo por causa da pandemia. Conforme a China começou a retomar sua expansão e puxar muito produto agrícola, houve já uma recuperaçã­o, teve o problema da safra americana, teve essa situação de desvaloriz­ação do dólar, já houve uma movimentaç­ão de elevação da inflação aqui dentro.

O que nos leva à política. A popularida­de do governo aumentou muito, mas às custas de uma deterioraç­ão fiscal muito grande. E estamos à beira de uma decisão de prorrogar ou não os R$ 300 [do auxílio emergencia­l] para 2021. Acho que isso vai acontecer, o que vai complicar ainda mais o quadro fiscal, que não vai melhorar tão cedo. Ao contrário, pode sair de controle.

Eu consigo ver esse ciclo durar um, dois anos. O ciclo de alta em dólar pode até ser um pouco mais. Ma sé possível que, na hora em que agente começara subira taxa de juros, o real comece a apreciar um pouco. Para 2021, não será assim, vamos continuar com real depreciado, porque a taxa de juros não deve subir tão rápido assim. São preços de commoditie­s bem mais baixos em dólar que na época do Lula, mas com um efeito em reais muito significat­ivo.

Esse ciclo pode durar até dois anos, já temos uma inflação de alimentos muito alta. Quanto tempo demoraria até que a demanda e oferta mundial se reequilibr­assem?

Antes da pandemia, o mundo

vivia um choque agrícola sem precedente­s, que foi o problema de peste suína africana que apareceu na China, a maior produtora de suínos do mundo. Veio a peste e dizimou 45% do rebanho suíno chinês. Por essa razão o preço do porco explodiu para o patamar mais alto da história. É a principal carne consumida pelos chineses, e isso fez com que eles tivessem de importar um volume absurdo de carne, o que bateu no boi e no porco brasileiro. Hoje, 40% a 45% do comércio mundial de suínos e 35% de bovinos vai para a China. Tem claramente uma demanda chinesa por falta de oferta de carne lá dentro.

Ao mesmo tempo, um bom pedaço do que foi destruído do rebanho era porco de fundo de quintal, minifúndio­s, que não consumia ração. Essa recomposiç­ão é feita em cima de uma tecnologia de ração. Não é por outra razão que a demanda por soja explodiu. Os chineses já compraram a safra 2021, já alongaram as compras para a safra 2022, porque sabem que vão demandar muita ração.

Se pensarmos em inflação, e já estamos nos níveis de preços mais altos da história em muitos produtos, eu não consigo ver repetir uma inflação de alimentos da magnitude de 12%, que é o que estamos projetando para este ano. Por outro lado, também não consigo ver devolver isso significat­ivamente. Se as commoditie­s subiram de preços, o mesmo vai acontecer para fertilizan­tes, químicos.

Com o real depreciado, o custo de produção sobe. Para 2021, estou projetando uma inflação de alimentos de 4%, muito abaixo da atual, mas não é uma variação negativa.

Muita gente no mercado tem uma leitura de que, no ano que vem, os agrícolas devolvem tudo o que subiram. Não acredito nesse cenário. O meu cenário tem uma implicação social relevante, que é manter os preços de alimentos relativame­nte altos enquanto o câmbio estiver onde está.

É normal ter uma venda tão

antecipada da safra? Uma venda antecipada dois anos antes eu nunca tinha visto. Para 2021, tudo bem, só que ela já começou em abril. E já foi vendido um pedaço relevante da safra 2022. Só mostra o quanto a China está ávida por grãos, soja principalm­ente. Fiquei assustado porque tive algumas consultas para a safra 2023. Milho, para o ano que vem também tem muita gente vendendo. Isso gera um choque significat­ivo de renda. Estou menos pessimista com esse cresciment­o. Por isso que essa inflação preocupa.

O sr. citou o coronavouc­her. Ele teria sido até mais que

o necessário? Não foi adequadame­nte avaliado o impacto que isso teve na inflação. Tem impacto duplo, porque ele estoura as contas públicas —o que bate no câmbio, e puxa o preço dos alimentos— e, ao mesmo tempo, você teve uma transmissã­o de preços no mercado interno extremamen­te elevada por um consumo mais forte.

Não foi dado o devido peso ao coronavouc­her na transmissã­o dos preços agrícolas. Como eu tenho renda, consigo transmitir internamen­te um nível de preço absurdamen­te alto.

Consolido um quadro fiscal que gera excesso de demanda, que por sua vez gera escassez.

No fundo, você estimulou o consumo acima do normal. Não houve alta de preços de alimentos durante as paralisaçõ­es na maioria dos países. No nosso caso, no meio da recessão, os preços não pararam de subir, porque uma exportação muito agressiva se complement­a com o voucher, e agora a terceira onda é subir preço em dólar com câmbio depreciado. É um choque de renda na economia brasileira muito grande.

Não há entrada de dólar para arbitrar diferencia­l de juros entre Brasil e EUA e Europa. A gente também está vendo que muitas empresas estão matando suas dívidas em dólar lá fora e tomando dívidas em reais. Ou seja, eu realizo a exportação, mas não internaliz­o o mesmo volume de dólares

“Não houve alta de preços de alimentos durante as paralisaçõ­es na maioria dos países. No nosso caso os preços não pararam de subir, porque uma exportação muito agressiva se complement­a com o voucher, e agora a terceira onda é subir preço em dólar com câmbio depreciado

 ?? Zanone Fraissat/Folhapress ?? Alexandre Lahóz Mendonça de Barros, 52
Engenheiro agrônomo e doutor em economia aplicada pela Esalq/ USP. É sócio-consultor da MB Agro e membro dos conselhos do Grupo Otávio Lage, Frigorífic­o Minerva, Guarita e Grupo Roncador. É membro do Conselho Superior do Agronegóci­o da Fiesp.
Zanone Fraissat/Folhapress Alexandre Lahóz Mendonça de Barros, 52 Engenheiro agrônomo e doutor em economia aplicada pela Esalq/ USP. É sócio-consultor da MB Agro e membro dos conselhos do Grupo Otávio Lage, Frigorífic­o Minerva, Guarita e Grupo Roncador. É membro do Conselho Superior do Agronegóci­o da Fiesp.

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