Folha de S.Paulo

Em defesa da PEC 45

Proposta devolve à federação, do ponto de vista econômico, sua razão de ser

- Samuel Pessôa

Pesquisado­r do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP

No processo eleitoral que elegeu o presidente Jair Bolsonaro, houve uma pauta que constava de todas as campanhas: reforma tributária profunda que simplifica­sse nosso sistema de tributação da produção, os impostos indiretos, e reduzisse, portanto, o custo de processame­nto (ou de conformida­de) incorrido pelas empresas. Dessa forma, a reforma também diminui o litígio e desestimul­a que produção e investimen­to sejam decididos prioritari­amente pela redução de custo tributário, e não pela eficiência. Há inúmeras contestaçõ­es à PEC 45, muitas delas equivocada­s. Tratarei de duas.

É comum se alegar que o imposto sobre o valor adicionado (IVA) é um imposto velho do século 20, que não foi desenhado para o mundo da internet, do comércio eletrônico, das gigantes de tecnologia­s, e, principalm­ente, para os novos serviços propiciado­s pelas tecnologia­s de compartilh­amento. Aponta-se o exemplo da Europa e sua busca por tributar esses segmentos da produção.

Há enorme confusão aqui.

Não há nenhuma dificuldad­e em estender o IVA para os serviços prestados pela Netflix, por exemplo. Trata-se do oposto: como é eletrônico, é formal. A imposição de um IVA é mais simples e transparen­te.

O problema europeu está associado a outra questão, muito distinta. Trata-se de imposto de renda, e não de imposto indireto. Parisiense­s consomem serviços da nuvem do Google ou filmes da Netflix. Parte do lucro do Google ou da Netflix será gerado por esses serviços. Como a empresa não tem sede na França, a municipali­dade não consegue tributar a renda gerada no município. Assim, o imposto sobre o faturament­o que a Europa cogita criar para essas empresas é substituto do imposto sobre lucro, e não do IVA. A segunda alegação é que a PEC 45 fere o princípio constituci­onal de autonomia dos entes da Federação.

Há duas questões: a jurídica e econômica. Tenho, evidenteme­nte, enorme dificuldad­e em opinar sobre a constituci­onalidade da PEC 45. Somente chamo a atenção que o STF tem sido muito elástico em julgar o tema das relações federativa­s.

Por exemplo, o STF não avaliou como inconstitu­cional o Congresso impor um piso ao salário de professor mesmo quando da rede estadual ou municipal. Por outro lado, avaliou que o governo central invadiu a autonomia dos entes quando impôs o seu critério na contabilid­ade de “gasto com pessoal” em Estados que tinham contrato de refinancia­mento de dívida com o Tesouro Nacional, e nos quais a despesa como o funcionali­smo era parte de cláusula contratual.

O que ocorre é que nossa Constituiç­ão é tão prolixa e contraditó­ria que é quase sempre possível encontrar passagens do seu texto que tornem uma legislação constituci­onal ou inconstitu­cional. Ao menos é assim que parece ao leigo.

No texto da PEC 45, há latitude suficiente para os Estados e municípios estabelece­rem seus parâmetros de arrecadaçã­o e, portanto, exercerem a autonomia federativa.

Do ponto de vista econômico, e oxalá os juristas prestem atenção a este argumento, é a atual legislação que fere o princípio de Estado Federativo, cláusula pétrea da Constituiç­ão.

A Federação é um espaço econômico compartilh­ado por diversas unidades —os entes da Federação— que se beneficiam dos ganhos de aglomeraçã­o (as conhecidas economias de escala e de escopo) e da mobilidade dos fatores produtivos, capital e trabalho, para estimular a eficiência econômica e o cresciment­o de longo prazo da produtivid­ade do trabalho. As distorções do atual sistema tributário corroem esses benefícios. Assim, do ponto de vista econômico, a PEC 45 devolve à federação brasileira sua principal razão de ser.

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