Folha de S.Paulo

No dia do médico, profission­ais relatam turbilhão com a Covid

Levantamen­to do Sindicato dos Médicos de SP mostra que 265 profission­ais morreram com a doença no país

- Patrícia Pasquini

Aprendizad­o e medo marcam agora a história dos médicos que atuam no atendiment­o aos pacientes com Covid e sobreviver­am à pandemia. Pelo menos 265 deles, segundo levantamen­to nacional do Simesp (Sindicato dos Médicos de São Paulo), não poderão contá-la.

Para este dia do médico, a reportagem conversou com três profission­ais de gerações diferentes que reaprender­am a trabalhar na pandemia.

“Estamos tentando cicatrizar as feridas”, diz Giovana Mara Manzari Pascoal, 37, que em março foi convidada a trabalhar em hospitais de campanha em Guarujá (SP) e Santos, onde também atendeu no Complexo Hospitalar da Zona Noroeste.

Giovana ainda está em tratamento para um câncer de mama descoberto em 2017. Ciente de que sua vida estaria em risco, aceitou a missão de atender pacientes com Covid.

“Quando fiquei doente, troquei o jaleco de médica pelo avental de paciente. Então, eu sabia o que essas pessoas estavam sentindo. A pandemia me fez mais resiliente, passei a acreditar na importânci­a da força de vontade e minha fé ficou mais valorizada. Espero que as pessoas pensem mais no coletivo”, afirma Giovana.

Foram mais de quatro meses intensivos em superação, novas amizades, perdas e aprendizad­o sobre a nova doença. No período, a médica ficou longe da família.

“Vi meus pais em fevereiro e depois no dia dos pais. Minha avó paterna morreu e não pude ir ao velório.”

No início, Giovana pensou que a Covid seria um surto semelhante ao do H1N1 e que o vírus entraria na cidade pelo porto. A realidade se fez nítida com uma avalanche de histórias de pacientes que imploravam pela vida todos os dias.

“Vi olhos desesperad­os e angustiant­es me pedindo para respirar e olhos brilhando me agradecend­o”, lembra.

“Quando começaram os primeiros casos, não conhecíamo­s a fisiopatol­ogia da doença. Em cada paciente ela se desenvolvi­a de um jeito. Isso foi assustador. Eu via alguns evoluindo bem, outros mal e não entendia o porquê.”

A médica não se esquece de um rapaz de 32 anos em um dos hospitais de campanha. “Ele me pedia para respirar. Eu via seu desespero. O dia 16 de maio, quando ele morreu, foi o pior dia da minha vida. Fiquei ao seu lado até partir.”

Giovana começou a estudar enfermagem na Faculdade de Medicina do ABC aos 17 anos. “Quando comecei a trabalhar, vi que estava no lugar certo, mas fazendo a coisa errada.”

Com esta percepção, aos 29 largou a profissão, fez cursinho, prestou vestibular e foi aprovada na Universida­de Metropolit­ana de Santos. Formou-se em 2019 e presta residência em clínica médica.

Além disso, trabalha na UPA Central de Santos como médica visitadora (conduz os casos que aguardam vaga para internação), nas UPAs Zona Leste de Santos e Enseada e no Complexo Hospitalar da Zona Noroeste, em Santos.

Rita de Cássia Guimarães Firmino, 60, também deixou de lado o jaleco e passou a paciente, mas de Covid-19.

Diabética e hipertensa, a médica clínica foi contaminad­a pelo novo coronavíru­s no início da pandemia.

Os primeiros sintomas foram falta de ar, cansaço e febre baixa. Como havia tomado a vacina contra o vírus Influenza H1N1, associou os sintomas a uma reação vacinal.

“Quando recebi o diagnós

“A gente faz medicina para melhorar a vida das pessoas. Quando veio a pandemia, começamos a olhar por outro lado. Era impossível ajudar sem se expor ao vírus”

Rodrigo Prado, 27

“Nós, médicos, somos vulnerávei­s em contato com doenças desde a faculdade. Enfrentamo­s várias epidemias. Sou muito grata aos meus colegas que me permitiram me recuperar

Rita de Cássia Guimarães, 60

tico, pensei em Deus e sabia que nada iria me acontecer porque Deus é tudo na minha vida. Não me preocupei.”

A tomografia constatou a lesão no pulmão compatível com a causada pela Covid-19. A médica que atendeu Rita prescreveu medicação e recomendou que ficasse em casa.

A piora veio três dias depois. Levada ao hospital, foi constatada a baixa saturação e, a equipe decidiu entubá-la. Foram quase dois meses internada, sendo 25 dias em coma induzido. “Fiquei muito grave. Meus amigos disseram que eu quase vi a luz branca.”

O episódio trouxe mudanças em sua vida pessoal, além da necessidad­e de reaprender a andar. “Eu me tornei uma pessoa mais forte, sensível, com mais discernime­nto e procuro ajudar mais as pessoas, principalm­ente as que têm caso de Covid na família”, diz.

Profission­almente, aponta, a doença permitiu aos médicos estudar mais, e a classe ficou mais unida. “Agora, sentimos aquela afinidade como se fosse de família mesmo, principalm­ente com a perda de colegas”, afirma Rita.

“Neste dia do médico, comemoramo­s a vitória da vida, de poder ajudar, de ser abençoado com essa sabedoria. Graças a Deus, estou viva!”

Rita retomou as atividades na AMA 24h Capão Redondo e UBS Integrada Jardim Capela (zona sul), administra­das pela prefeitura de São Paulo em parceria com o Cejam (Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim), e hoje conta a sua história aos pacientes.

“Saio fortalecid­a e convicta de que preciso manter o meu legado de cuidado”, diz, citando as duas filhas médicas e o filho que estuda medicina.

O mineiro de Varginha Rodrigo Prado, 27 anos e formado há dois, também teve a experienci­a da Covid em primeira mão. Apos sentir dor no corpo, coriza, perda de olfato e um incômodo na pele, recebeu o diagnóstic­o há 45 dias —ele já se recuperou.

A pandemia foi um divisor de águas em sua vida profission­al. Médico clínico do pronto-socorro do Hospital Albert Sabin de São Paulo, Rodrigo aumentou os plantões de cinco para sete na semana para dar conta dos casos da doença quando alguns colegas deixaram a linha de frente.

“A gente faz medicina para melhorar a vida das pessoas. Quando veio a pandemia, começamos a olhar por outro lado. Era impossível ajudar sem se expor ao vírus.”

Nem a vocação precoce, manifestad­a na infância e sedimentad­a ao se formar na Universida­de Federal do Cariri, conteve o furacão emocional trazido pela pandemia. “Lembro de um paciente com mais de 30 anos que chegou com ataque de pânico. Ele tinha perdido os pais com Covid-19 no espaço de uma semana e depois a avó havia contraído a doença”, relata.

Rodrigo recorreu a terapia. “Meus dias foram emocionalm­ente muito pesados”, conta.

Ele diz acreditar, porém, que a medicina ficou “mais estudiosa”, e a pandemia melhorou a percepção dos profission­ais sobre o diagnóstic­o das doenças.

 ?? Adriano Vizoni/Folhapress ?? Rodrigo Prado, 27 anos, clínico-geral do hospital Albert Sabin de SP, recorreu à terapia
Adriano Vizoni/Folhapress Rodrigo Prado, 27 anos, clínico-geral do hospital Albert Sabin de SP, recorreu à terapia
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Adriano Vizoni/Folhapress Rita de Cássia Guimarães, 60, teve Covid

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