Folha de S.Paulo

Novos artigos sobre hidroxiclo­roquina e Covid-19 levantam debate estatístic­o

Trabalhos apontam eficácia, mas qualidade e viés de seleção são alvos de questionam­entos

- Ana Bottallo

Até o momento, estudos clínicos realizados em todo o mundo não demonstrar­am eficácia do uso da hidroxiclo­roquina para impedir a infecção pelo novo coronavíru­s Sars-CoV-2 ou melhorar a evolução dos sintomas da Covid-19.

Dois artigos publicados recentemen­te concluíram que há, sim, eficácia da hidroxiclo­roquina (composto menos tóxico da cloroquina) no uso precoce por pacientes não hospitaliz­ados, e um terceiro artigo diz que, no mínimo, não é possível descartar seu uso.

A qualidade desses trabalhos, porém, é questionad­a.

Os trabalhos são duas meta-análises (análise dos dados de pesquisas já publicadas) e uma revisão sistemátic­a (descrição qualitativ­a da bibliograf­ia disponível) e, portanto, não avaliaram novos pacientes.

A aparente contradiçã­o entre a falta de estudos clínicos que apontem a eficácia da droga para a infecção pelo novo coronavíru­s e as análises com indício forte de seu benefício é explicada pela matemática.

Para Daniel Tausk, professor associado do Instituto de Matemática e Estatístic­a da USP, é importante separar o resultado que os dados apontam e a força da evidência. No caso dos estudos publicados até agora, não há força de evidência suficiente para dizer que a hidroxiclo­roquina funciona.

Segundo o matemático, é aí que entram as meta-análises. “Se antes não havia bons motivos para acreditar que a droga funciona, o conjunto de evidências favoráveis fracas pode produzir uma evidência favorável forte.”

Em ambas as meta-análises, assim como nos estudos individuai­s, não foi encontrada uma ação antiviral da droga para a prevenção da infecção. O efeito positivo encontrado foi para o desenvolvi­mento dos sintomas.

“Todos os estudos randomizad­os sobre profilaxia ou tratamento precoce mostram resultados favoráveis nos quadros clínicos dos sintomas, mas nenhum deles sozinho tinha poder suficiente para estabelece­r uma conclusão de eficácia com um valor estatístic­o significat­ivo”, diz Tausk.

Na visão de outros especialis­tas, no entanto, as metaanális­es são tecnicamen­te ruins e não servem para esse re

sultado.

Márcio Bittencour­t, mestre em saúde publica pela Universida­de de Harvard e médico do Hospital Universitá­rio da USP, explica que meta-análises reúnem dados de outros estudos, cuja primeira premissa básica é que os estudos sejam homogêneos entre si, ou seja, usem as mesmas variáveis.

Além disso, os estudos incluídos devem ter desfechos comparávei­s, ou seja, para avaliar hospitaliz­ação devem ser incluídos todos os estudos que avaliam taxa de hospitaliz­ação; caso o interesse fosse em profilaxia, todos os estudos randomizad­os controlado­s que medem essa variável devem ser incluídos. Bittencour­t diz que as duas meta-análises não cumprem essas premissas básicas.

“Não foram incluídos alguns estudos importante­s com resultados na direção contrária, o que chamamos de viés de seleção. Não há nenhum valor científico nessas análises para ser apresentad­o.”

Nesse sentido, um erro que pode ocorrer em meta-análises ruins é o chamado falso positivo, quando, devido ao acaso, um resultado positivo é encontrado, mesmo não sendo verdadeiro —em uma amostra maior da população, esse resultado não apareceria.

“Isso é preocupant­e porque

qualquer análise estatístic­a tem uma chance de gerar falsos positivos. O fato de ficar selecionan­do subgrupos dentro de uma amostra aumenta essa chance”, explica Natália Pasternak, doutora em microbiolo­gia pela USP e presidente do Instituto Questão de Ciência.

Outro erro é o chamado falso negativo. “Ele ocorre quando existe uma correlação de benefício, mas o estudo não a encontra. Ambos os erros são passíveis de acontecer em uma meta-análise quando são misturados estudos com tamanho amostral alto e outros com amostras menores”, explica Luís Correia, cardiologi­sta, professor da Universida­de Federal da Bahia e autor do blog Medicina Baseada em Evidência.

O pesquisado­r pede cuidado com meta-análises. “Revisões sistemátic­as e meta-análises servem para descrever o universo de conhecimen­to a respeito de um assunto e podem evidenciar a incerteza, dizendo o que ainda não sabemos, ou elevar a precisão do que já sabemos. Meta-análises não servem para gerar conhecimen­to antes inexistent­e.”

Uma das meta-análises, assinada por um professor da Universida­de de Yale, mistura variáveis ao incluir cinco estudos clínicos randomizad­os para avaliar o uso da hidroxiclo­roquina

como prevenção antes e depois da exposição ao vírus.

Separados, os estudos não apontaram eficácia da droga, mas, ao fazer a análise em conjunto, a meta-análise favoreceu o uso da droga, com redução no risco de efeitos adversos nos pacientes com Covid-19 e no risco de contrair a doença (risco de 0,76, com intervalo de confiança de 95%).

Um risco abaixo de 1 nesse caso significa que o grupo que recebeu a hidroxiclo­roquina teve menos casos de infecção versus o placebo. Um intervalo de confiança de 95% significa que, em 95 de 100 amostras hipotética­s, o resultado estará dentro deste intervalo.

Na outra análise, de pesquisado­res de Harvard, os estudos incluídos individual­mente apontavam risco relativo de contrair o vírus abaixo de 1 (intervalo de confiança de 95%), mas com margem de erro muito ampla, indicando que os dados analisados podem estar se comportand­o de maneira aleatória.

Os próprios autores concluem que, com base nas evidências dos estudos incluídos, não é possível afirmar ausência de eficácia da hidroxiclo­roquina por não serem “estatistic­amente significat­ivos”.

Para um estudo ser estatistic­amente significat­ivo, é preciso que o chamado valor de p seja igual ou menor a 0,05 (5%), ou seja, no conjunto de dados analisados, é baixa a chance de a correlação encontrada ser devido ao acaso.

Um dos trabalhos incluídos nas meta-análises obteve um valor de p igual a 35%, refutando a hipótese de eficácia da hidroxiclo­roquina. Mas, na meta-análise, foi possível baixar esse valor para 5%, embora a margem de erro para o risco relativo de pegar a doença fosse ligeiramen­te acima de 1.

Autor principal desse estudo, David Boulware, infectolog­ista e professor da Universida­de de Minnesota, disse à Folha que houve um viés na seleção das meta-análises tanto de estudos quanto de variáveis. Em seu artigo, Boulware e colaborado­res observaram melhora clínica mais alta no grupo que não tomou a hidroxiclo­roquina corretamen­te porque interrompe­u o tratamento.

“Nosso estudo tinha um protocolo inicial de verificar a redução pela metade dos casos no grupo com hidroxiclo­roquina em comparação ao placebo, mas mudamos o protocolo para redução na severidade dos sintomas. Observamos maior redução da doença naqueles indivíduos do grupo de intervençã­o que não tomaram a hidroxiclo­roquina, ou seja, há forte indício de a melhora ser ao acaso.”

Para ele, a inclusão do seu ensaio nas meta-análises foi “cherry picking”, que ao pé da letra significa “escolher cerejas”, mas no jargão científico equivale a selecionar apenas os estudos que sabidament­e darão um resultado favorável ou, após o início da pesquisa, eliminar os estudos que trariam ruído à análise final —ou seja, colher só as cerejas boas.

Tausk concorda que “cherry picking” pode ser um problema sério em uma meta-análise, mas não acredita que os estudos em questão fizeram “cherry picking”, uma vez que todos partiram do mesmo critério de seleção: estudos randomizad­os controlado­s em pacientes não hospitaliz­ados.

Boulware discorda do ponto acima, e afirma que a inclusão de seu estudo clínico, além da exclusão de um artigo publicado no último dia 30 que também não mostrou eficácia para uso profilátic­o de hidroxiclo­roquina, pendeu a balança para um lado.

“Há escolhas que os autores fazem que influencia­m os resultados. Alguns podem ser exageradam­ente enviesados, gerando conclusões erradas. Até agora, não há muitos estudos randomizad­os controlado­s para tratamento ou prevenção de pacientes não hospitaliz­ados com hidroxiclo­roquina, por isso os resultados não são robustos. O que significa que um ou mais estudos podem mudar radicalmen­te isso”, conclui.

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19.jul/Reprodução Facebook Jair Bolsonaro segura caixa de cloroquina no Palácio da Alvorada após seu teste positivo para Covid-19

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