Folha de S.Paulo

Quem me assiste é que vai determinar se devo parar

Aos 70 anos, apresentad­or fala sobre decisão de não comemorar duas décadas de Altas Horas, relembra espetáculo­s realizados por ele na ditadura e diz que público não pode ser subestimad­o

- Bianka Vieira

Poucos foram os palcos que receberam tantos ilustres da música brasileira quanto o fusquinha branco de Serginho Groisman nos anos 1970. Belchior, Clementina de Jesus, Cartola, Luiz Melodia, Raul Seixas e Nelson Cavaquinho foram alguns dos que se espremeram no interior do automóvel com janela quebra-vento.

“Às vezes, eu fazia alguns caminhos errados para que o trajeto ficasse mais longo e eu pudesse ter mais tempo conversand­o”, relembra o apresentad­or sobre os tempos em que coordenava as atividades culturais do Colégio Equipe, na capital paulista, e fazia o transporte dos artistas.

Seu primeiro vínculo com a instituiçã­o foi como pré-vestibulan­do. Serginho passou em processos seletivos e por três faculdades diferentes — cursou um pouco de direito, outro tanto de história e se diplomou em jornalismo—, mas permaneceu no Equipe durante uma década por causa da tradição de shows e debates que engendrou no local.

“Começou um boca a boca entre os cantores. Era uma época da ditadura em que as pessoas não tinham onde se apresentar”, diz. “Num dia que eu levei o Jards Macalé, eu vejo na fila o Gil comprando ingresso. Aí eu não acreditei. Ninguém acreditou.” Após o episódio, o cantor baiano também se apresentou no Equipe.

Enquanto conversa com a coluna, Serginho Groisman, 70, veste uma camiseta azul cintilante com um “S” de “SuperHomem” gravado no peito. “Eu não esperava que a entrevista seria por vídeo”, se apressa ao dizer assim que sua imagem é exibida pela câmera. Mas a razão do traje tem nome e disposição de sobra para viajar a universos paralelos: Thomas, seu filho de 5 anos.

“A gente embarca numas aventuras. Essa parte da manhã foi para brincar de super-herói”, conta Serginho. “A partir do momento em que ele nasceu, eu e a Fernanda [Molina, sua esposa] começamos a fazer uma engenharia melhor da vida para ficar o maior tempo possível com ele. Virou uma prioridade mesmo.”

Serginho conta que Thomas chama a pandemia de “febre mundial” e entende que não pode sair de casa, mas que “às vezes fica entristeci­do, como qualquer criança”. “Eu estou muito CDF. Muito mesmo”, afirma o apresentad­or sobre se manter fiel à quarentena.

“Fui estruturan­do o Altas Horas de casa. Isso foi chegando aqui aos poucos”, diz, e se levanta da cadeira para exibir as câmeras e os equipament­os de luz que o cercam em seu escritório, de onde tem apresentad­o o programa da TV Globo. “Eu é que fui montando tudo, ninguém entrou em casa. Está sendo tipo o [filme] ‘Um Homem com uma Câmera’, do Dziga Vertov”, brinca.

O Altas Horas, que tem apresentaç­ão e direção-geral de Serginho, completa duas décadas nesta semana. O rito de passagem não será celebrado com bolo nem chuva de confete, porém. “Não dá para ser desrespeit­oso com o que está acontecend­o lá fora. Não dá pra dar o mau exemplo. Eu até poderia fazer uma festa virtual, mas resolvi como um valor: não vai ter festa.”

A debandada dos estúdios provocada pela Covid-19 desmanchou os planos para a comemoraçã­o dos 20 anos, que iam de reuniões de bandas que não existem mais ou não estão completas, como os Titãs, à ideia de distribuir câmeras em cidades para que as pessoas gravassem uma mensagem.

“Quadros não faltavam, sabe? A gente ia usar muito o arquivo do programa para procurar pessoas da plateia, saber onde e como elas estão hoje”, afirma. “Vai ficar para o ano que vem, não tem problema. Quer dizer, se tudo correr bem para o ano que vem, né? Nós somos espectador­es nessa Covid, e não protagonis­tas.”

Se do ano 2000 para cá a atração passou por mudanças de cenários, renovação de quadros e diferentes faixas de horários (o Altas Horas já chegou a ser apresentad­o entre 3h e 5h da manhã), a plateia se consolidou como um membro permanente. “O espectador do programa não vem só para assistir, ele vem para interferir de alguma maneira.”

A tradição foi herdada da passagem do apresentad­or por outras emissoras na década de 1990, como a TV Cultura, onde comandou o Matéria Prima, e pelo SBT, quando apresentou o Programa Livre.

“Eu estava muito bem na TV Cultura e recebi uma ligação do Silvio Santos. Eu achava o SBT ‘popularzão’ demais. Ele falou: ‘Vem fazer o seu programa aqui porque mais gente vai ver o que você está fazendo’. Eu falei: ‘E a liberdade?’. E ele disse: ‘Vai falar com o Jô, pergunta para a Hebe, Boris Casoy e Marília Gabriela se eu dou ou não liberdade’.”

“Eu desci e vi aquele lugar cheio de gente. Bozo, Vovó Mafalda, O Homem do Sapato Branco, aquela multidão de gente diferente. Pensei: ‘Putz, isso é a televisão brasileira’.”

“Eu sou da época que a minha relação com o espectador era por cartas e por telefone, o que parece hoje muito dinossauro. Mas à medida em que as coisas começaram a acontecer, eu sempre fui muito atento para observar e praticar”, pondera sobre o surgimento de novas plataforma­s.

Uma das reflexões que orientam o seu trabalho, conta, é a de não subestimar o público que o assiste. “As pessoas falam que a televisão molda uma sociedade, como se a sociedade estivesse sentada em frente à TV e aceitasse tudo o que ela propõe. Como se não houvesse amanhã, como se a pessoa não fosse acordar no outro dia e pegar um ônibus, pegar o metrô, trabalhar.”

“Eu não faço editoriais porque acredito muito no poder de absorção e reflexão da sociedade brasileira. Às vezes eu dou palestras e há essa preocupaçã­o sobre manipulaçã­o. Eu pergunto quantos se sentem manipulado­s, mas ninguém levanta a mão. As pessoas acham que sempre são os outros os menos inteligent­es e capacitado­s. Ninguém acha que é moldado pela televisão, mas que os outros, sim.”

Apesar da polarizaçã­o gerada por pautas identitári­as no país, o apresentad­or considera fundamenta­l que elas sejam discutidas pelo entretenim­ento televiso. “Se você for se curvar a pessoas que não estão querendo ouvir argumentos, não tem sentido você seguir onde está. É exatamente nesse momento, de total conservado­rismo e de intolerânc­ia, que cabe às pessoas abrir espaço para quem não pode se expressar.”

“Esse espírito de intransigê­ncia gera o espírito de violência também. E não é por acaso que isso esteja acontecend­o ao mesmo tempo em vários lugares. Existe, no consciente ou até no inconscien­te, uma permissão para a violência. Mas eu sempre acredito muito na possibilid­ade das pessoas começarem a se ouvir de novo.”

A chegada aos 70 anos, completado­s em 2020, foi recebida com naturalida­de por ele. “Eu sabia que ia fazer 70 anos já há um tempo”, brinca. “É claro que você olha para trás, vê quanta coisa que já fez, pensa muito na saúde. Hoje eu quero ter saúde para trabalhar e para ficar com minha mulher e com meu filho.”

“As pessoas têm muita curiosidad­e, com toda razão, porque se posicionam muito em relação ao tempo”, emenda. “Se eu seguisse a cartilha da ampulheta, eu pensaria ‘poxa, será que eu posso começar a fazer televisão com 40 anos?’. As coisas foram acontecend­o na minha vida, eu nunca tive muita pressa.”

“Não é uma calma de terapia, é uma calma de vida, de sempre acreditar que vai abrir um caminho diferente.”

É com firmeza que Serginho Groisman responde ao ser indagado se a aposentado­ria é um plano em seu horizonte. “Não me passa pela cabeça. Quem vai determinar isso sou eu, em primeiro lugar, e em primeiro lugar também, empatado [risos], as pessoas que me assistem. Enquanto tiver vontade e saúde, vou trabalhar.”

“Eu vejo uma população com mais de 60 anos cada vez mais ativa. E tem pessoas que você nem tem coragem de perguntar. Você não pode perguntar para o Caetano [Veloso] se ele vai se aposentar, você não pode perguntar pro Gil e nem pro Milton [Nascimento], a gente quer mais é que essas pessoas continuem produzindo. A gente não quer que a Fernanda Montenegro pare. E eles também não querem, o que é bom para todos nós.”

As pessoas falam que a televisão molda uma sociedade, como se a sociedade estivesse sentada em frente à TV e aceitasse tudo o que ela propõe. Como se não houvesse amanhã, como se a pessoa não fosse acordar no outro dia e pegar um ônibus, pegar o metrô, trabalhar

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Fábio Rocha/Globo Retrato do apresentad­or Serginho Groisman em sua casa, em SP

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