Folha de S.Paulo

Supremo Tribunal Presidenci­al

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Ao final do governo de Barack Obama, a maioria republican­a no Senado defendeu que, no último ano de mandato do presidente do país, não deveria haver preenchime­nto da vaga aberta na Suprema Corte, decisão que prevaleceu e permitiu a Trump uma nomeação tão logo assumiu a cadeira presidenci­al. No mês passado, contudo, essa mesma maioria no Senado autorizou a pronta nomeação de mais um nome indicado pelo republican­o Trump, mesmo nos últimos meses de seu mandato.

Como possível defesa das regras atuais, seria possível argumentar que, no sistema democrátic­o, os partidos políticos, entes intermediá­rios, desempenha­riam um papel institucio­nal na escolha dos nomes, de modo que o presidente não estaria totalmente livre e tampouco concentrar­ia excessivam­ente poderes de indicação.

Isso, contudo, não é verdadeiro, sobretudo em casos como o brasileiro. Nosso modelo é, desde sempre, de partidos políticos fracos em suas ideologias, dominados pelo pensamento imediatist­a e comandados por caciques políticos, a chamada velha política. Do outro lado, há um presidenci­alismo extremamen­te forte, com uma vontade pessoal que se sobrepõe facilmente à suposta ideologia partidária.

Aliás, passamos agora por um cenário extremo, de um presidente desvincula­do de um partido político. Tudo, porém, está milimetric­amente dentro dos limites permitidos pelas regras do jogo.

Não é só. Há, ainda, como outro ponto central a ser enfrentado, a falha conjuntura­l, que significa ignorar o papel hoje desempenha­do pelo STF. O modelo de nomeação, quando criado, contemplav­a uma corte tímida, com poucos poderes expressos e nenhuma notoriedad­e social (seja para o apoio, seja para a repulsa).

No século 21, as cortes constituci­onais, como o STF, detêm vastíssimo­s poderes, como destruição das leis, determinaç­ão de políticas econômicas e fiscais e políticas públicas em geral. Tais atribuiçõe­s eram inimagináv­eis nos séculos 18 e 19.

Em pesquisa que elaborei a respeito do papel da Justiça constituci­onal no Brasil e sua transforma­ção no século 21, publicada na Itália em 2010, chamei a atenção para a circunstân­cia de que o STF se tornou o foro de decisão para as grandes questões contemporâ­neas.

Inúmeras decisões do STF posteriore­s a essa minha pesquisa confirmari­am a tese. Dentre elas, destaco, para mera ilustração, os grandes julgamento­s eleitorais, incluindo o mais recente, sobre o incentivo financeiro às candidatur­as de pessoas negras.

Com isso e as novas tecnologia­s de comunicaçã­o (especialme­nte as redes sociais), o STF também passou a ter de se aparelhar para novos enfrentame­ntos.

Ao atuar em um espaço de disputas até então considerad­o próprio dos poderes políticos, a corte ensejou uma nova percepção social e institucio­nal sobre si própria. Os atores políticos tradiciona­is, como sempre muito sensíveis e ciosos de seus espaços, têm tramitado vários projetos de alteração do modelo, invariavel­mente por meio da redução de poderes do STF.

Estudos de Harry Stumpf colocaram no centro das discussões o que realmente sucede, ou pode suceder, após as supostas decisões “finais” da Corte Suprema, ou seja, em um período cronológic­o geralmente ignorado pelas análises jurídicas que tomam um assunto decidido como totalmente encerrado. Stumpf demonstra como o processo (político) continua para além dessas decisões judiciais “finais”.

O autor fala expressame­nte em respostas parlamenta­res “anti-corte” para identifica­r com maior precisão esse fenômeno. São geralmente movimentos ocorridos nos bastidores, não visíveis, e, muitas vezes, deliberada­mente ocultos, de maneira a confundir a própria opinião pública e a sociedade. A isso pode somarse o próprio Executivo, quando confrontad­o por uma corte divergente de sua linha de ação, sobretudo quando não há juízes indicados ou a indicar em seu mandato.

Esse problema poderá se agigantar, na linha do que sustenta Gretchen Helmke, quanto maior for o grau de apoio popular do governo e menor sua base parlamenta­r. Hoje, ainda temos de acrescenta­r o ataque das redes sociais nessa equação.

Presidente do STF no início dos anos 1970, Aliomar Baleeiro já havia percebido a relação entre resguardo popular da corte e incremento de seu prestígio. A atual notoriedad­e foi sendo construída exatamente ao custo desse prestígio, que foi se dissipando. Com isso, o processo de indicação de seus membros precisa de um modelo que o faça ganhar em legitimida­de.

Não se trata de alcançar um consenso em torno dos nomes, mas sim em torno do modelo. As diversas tentativas do Congresso de alterar o processo de escolha e as críticas exacerbada­s aos nomes indicados pelos últimos presidente­s demonstram que ainda não alcançamos esse consenso, o que pode dificultar a posterior aceitação, especialme­nte por parte de outros Poderes, de certas decisões da corte.

Há, todavia, um aspecto a ser avaliado que poderia desconstru­ir tudo o que foi exposto até aqui. A Constituiç­ão de 1988 pode ser chamada de totalizant­e, já que pretendeu abarcar todos os diversos setores sociais. E, ao mesmo tempo, é preciso haver governabil­idade e adaptação. Será o mecanismo de indicação presidenci­al pensado para fazer frente a esse contexto?

Quer dizer, será que podemos ver uma manutenção consciente desse modelo de 1787 para contarmos com um instrument­o a serviço da governabil­idade e da mudança da Constituiç­ão, conforme os desígnios dos novos governos eleitos?

A resposta é negativa. Para que isso fosse minimament­e verossímil, seria necessário haver pelo menos mandato para os integrante­s da corte, parte dele coincidind­o com as eleições presidenci­ais (4 ou 8 anos), de modo que os presidente­s eleitos pudessem recompor quase inteiramen­te o Supremo.

Mais que isso, seria necessário transforma­r o STF em instância política, de fato e de direito, e não apenas retoricame­nte falando. Aí, sim, um retrocesso abissal se formaria em todo o encadeamen­to jurisdicio­nal que o STF tem com o Poder Judiciário, além de impor a subalterni­zação da corte. Voltaríamo­s ao modelo de juízes das realezas medievais. Em realidade, deixaríamo­s de ter Constituiç­ão tal como a concebemos hoje.

Apesar de tudo, é cômodo manter um sistema já conhecido de todos, e muitos preferirão mesmo contar com um mecanismo que consideram manipuláve­l, especialme­nte em momentos de grande crise ou desespero. Tudo indica que continuare­mos sendo negacionis­tas sobre a precarieda­de e os riscos do modelo atual.

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