Folha de S.Paulo

Recife da corte real

A morte de Miguel, de 5 anos, causa engulhos de indignação

- Marilene Felinto Escritora, autora de ‘As Mulheres de Tijucopapo’. Mantém o site marilenefe­linto.com.br

Agora que a justiça chove não molha resolveu bloquear R$ 2 milhões em bens do prefeito de Tamandaré (PE), Sérgio Hacker (PSB), e da mulher dele, Sarí Côrte Real, criei coragem para escrever sobre esse caso.

A Côrte Real é aquela que largou o menino Miguel Otávio Silva, de 5 anos, filho de sua empregada doméstica, sozinho dentro de um elevador em Recife. O menino desabou para a morte do 9º andar do prédio, como um molambo qualquer, em junho último.

Evitei o caso Miguel por não suportar falar do meu próprio histórico de empregadas domésticas negras na família, coisa muito dolorosa.

O bloqueio dos bens do prefeito Hacker —candidato à reeleição, pasme!—, voltando ao tema, se deve a uma ação civil pública em que foi denunciado por “supostamen­te” pagar salários de três empregadas domésticas suas com dinheiro público, registrand­oas em cargos comissiona­dos na prefeitura.

Duas dessas empregadas são a mãe de Miguel, Mirtes Renata Santana, e a avó, Marta Maria Santana Alves. No dia da morte de Miguel, Mirtes recebera ordem de ir passear com o cachorro da patroa, deixando o filho aos cuidados desta.

A Côrte Real, porém, indiferent­e ao destino da criança, que pedia pela mãe, soltou-a sozinha dentro do elevador. Era junho, e as empregadas trabalhava­m normalment­e na casa da Côrte Real, em plena pandemia de Covid-19.

Claro que a justiça chove não molha —quando se trata de ricos e poderosos— deve em breve reverter essa decisão e livrar a cara dos Hacker-Côrte Real. A patroa foi apenas indiciada por “suposta” participaç­ão na morte da criança. Fosse preta, já estava amargando xadrez há tempos.

Emblemátic­o da Recife imperial, escravagis­ta, que a patroa seja uma mulher branca e suas empregadas e Miguel, negros. O caso dá a dimensão do racismo estrutural brasileiro. Nasci e passei a infância ali, nos anos de 1960, na cidade que já era tão racista que asfixiava. Pensei que isso tinha mudado.

Ganhei coragem para tratar do caso porque reli recentemen­te o romance “S. Bernardo”, de Graciliano Ramos, e estou afiada no palavreado rude do protagonis­ta Paulo Honório, tão necessário ao ataque (e à vingança) por tanta injustiça social. Meu desejo era mesmo parodiar de cabo a rabo aquela obra-prima de Ramos.

A morte de Miguel causa engulhos de indignação. Primeiro, porque a família Hacker é uma dinastia hegemônica e cheia de privilégio­s na região. Elegem-se e reelegem-se há décadas nos municípios vizinhos de Tamandaré, Sirinhaém e Rio Formoso, mantendo o grosso da população pobre e subalterna, e a diferença de classe intranspon­ível.

Segundo, porque a patroa Côrte Real é exemplar típico da Recife oligárquic­a branca, cidade imperial, em que resistem (desde as capitanias hereditári­as), nos logradouro­s do centro, nomes de princesas, condes e latifundiá­rios: rua Princesa Isabel, rua da Imperatriz, rua Conde da Boa Vista, ponte Duarte Coelho etc.

Qualquer semelhança do significad­o de “corte” com “conjunto de pessoas da nobreza” não será mera coincidênc­ia: pois é assim que se autoconsid­era aquela gente como Sarí, que vive num dos chamados “edifícios píer”, duas torres de apartament­os de luxo, de 41 andares, construído­s no cais de Santa Rita, no bairro central de São José.

A construção, concluída em 2009, foi alvo de um movimento de resistênci­a e protesto popular, o Ocupe Estelita, contrário ao empreendim­ento devastador da paisagem e da arquitetur­a do bairro histórico.

De nada adiantou. Mais uma vez a classe dominante vencia o povo, e hoje olha lá de cima, prepotente, o mar e os mocambos atolados no mangue, moradia da gente preta que limpa seus banheiros.

Tenho histórico de empregadas domésticas na família... Vitalina era uma, aparentada negra que vivia nos fundos de um casarão de gente rica, na avenida beira-mar da praia de Boa Viagem.

Vitalina era comovente... Disse a minha mãe, certo dia, quando a visitávamo­s em seus aposentos, que poderia abrigar ali todos nós, os filhos, caso minha mãe precisasse, pois estávamos à beira da fome.

Mas morar onde? No quarto de empregada ou na casa da frente? Na minha insignific­ância de menina pequena, tive raiva de Vitalina. Percebi a condição de inferior que cabia a ela. Tive raiva. Ela que me arranjasse a casa da frente ou nada! Que eu não ia viver naquele fundo de quintal!

Não ia me submeter à condição de molambo, de cachorro, que a corte real de Recife reservava para Vitalina. Não! E não me venha com religião e com a sua justiça! “Que justiça! Não há justiça nem há religião. [...] Não me venha com a sua justiça, porque se vier, eu viro cachorro doido e o senhor morre na faca cega”, dizia Paulo Honório.

Ora, tanta crueldade, tanta patifaria e injustiça. Para o inferno, para a casa da peste!

O caso dá a dimensão do racismo estrutural brasileiro. Nasci e passei a infância ali, nos anos de 1960, na cidade que já era tão racista que asfixiava

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