Folha de S.Paulo

PANDEMIA ESVAZIA ACAMPAMENT­O SEM-TERRA

Covid chega ao Marielle Vive, em Valinhos, que sofre com falta d’água e de luz

- Dhiego Maia e Karime Xavier Dhiego Maia e Karime Xavier As reportagen­s da série O Brasil das várias pandemias contaram com apoio financeiro do Instituto Serrapilhe­ira

Ana Rodrigues, 6, assiste a aula remota em barraco que serve de salão de cabeleirei­ro no acampament­o Marielle Vive, do MST, instalado em Valinhos, no interior de São Paulo.

Com o desemprego provocado pela crise econômica na pandemia, 600 das 1.400 famílias abandonara­m o local, que tem acesso precário a água, luz e internet.

valinhos (sp) Ana Rodrigues, 6, faz malabarism­o para, ao mesmo tempo, segurar o celular, folhear o livro e interagir com a turma na aula remota. Ela estuda sob o teto quente do barraco onde funcionava o salão de cabeleirei­ros improvisad­o de sua madrasta.

Sua presença na aula virtual causa surpresa: “Você, por aqui?”, indaga a professora.

Ana é uma aluna que pouco comparece às aulas a distância na pandemia.

No lugar onde ela vive, sobra natureza e muito empenho coletivo para fazer brotar comida em qualquer pedaço de chão. Mas falta energia elétrica, água encanada, coleta de esgoto e internet para que a menina possa assistir às aulas. O local fica a 95 km de São Paulo, em Valinhos, conhecida por abrigar condomínio­s residencia­is de luxo.

Ana é uma pequena semterra que, mesmo sem ainda compreende­r, sente na pele o abismo social aprofundad­o pelo novo coronavíru­s.

A menina consegue vez ou outra acompanhar as aulas online porque a madrasta conseguiu comprar recentemen­te uma placa solar rudimentar com dinheiro do auxílio emergencia­l de R$ 600, oferecido pelo governo federal.

A energia solar gerada serve para carregar a bateria do celular, fazer o gelo que esfriará a água e proporcion­ar a única diversão noturna da família: assistir às telenovela­s.

“O problema vai ser sempre o dinheiro para o crédito no celular. Quando tenho, coloco e ela estuda”, diz sua madrasta, a cabeleirei­ra Priscila Gomes, 28. “Mas são três crianças na escola para um celular disponível. É claro que essa conta nunca fecha e todas elas serão prejudicad­as.”

Ana mora com quatro irmãos, a madrasta e o pai no acampament­o Marielle Vive, cujo nome homenageia a vereadora carioca assassinad­a em 2018.

A Folha foi até agora o único veículo da grande imprensa a ter acesso ao espaço em plena pandemia.

O acampament­o é o maior território do MST (Movimento dos Trabalhado­res Rurais Sem-Terra) no estado de São Paulo e ocupa a área de uma fazenda privada onde havia o projeto de construção de mais um condomínio fechado.

Quando os sem-terra invadiram o local, 1.400 famílias se instalaram ali. Mas o desemprego gerado pela pandemia já fez com que 600 delas deixassem o acampament­o —a direção do MST não sabe dizer para onde elas foram.

No lugar onde o improviso impera, não ter água encanada é outro fator que leva muita gente a deixar o Marielle Vive.

A água que abastece a ocupação é fornecida por um caminhão-pipa da prefeitura, que não aparece todos os dias, segundo os acampados. A água, quando chega, enche dezenas de caixas d’água e é transporta­da em baldes pelos moradores. Questionad­a sobre a falta de regularida­de no fornecimen­to, a Prefeitura de Valinhos não se manifestou.

Agora, além da falta de água e de energia, o Marielle sofre também com os primeiros casos de Covid-19.

O acampament­o é dividido em núcleos nos quais as tarefas para manter cada um desses espaços funcionand­o são compartilh­adas por quem vive naquela área. A confirmaçã­o de um caso de Covid-19 levou dois desses núcleos a entrarem em quarentena.

“Eu tenho certeza que peguei o vírus porque lido com muita gente”, diz Ketley Júlia

Soares Gomes, 20, a primeira acampada ater a doença. Ela, que é atendente de loja num shopping da cidade, falou à Folha por telefone na sexta (16), 14º dia de seu isolamento.

No núcleo em que Ketley vive, 24 famílias estão isoladas e recebem almoço e jantar feitos na cozinha comunitári­a. Entre os quarentena­dos dali estão o namorado e duas tias —uma delas, assim como sua avó, apresentav­a sintomas de Covid. As duas fariam o teste para confirmar se também haviam sido infectadas.

Nos núcleos ainda sem casos suspeitos de Covid, ar eco mendaçãoé paranã o andar pelo território sem necessidad­e. É oque ensina ado nade casa J uci cleide Santos Ribeiro, 29, aos seis filhos.

Sua família vive nas poucas casas de tijolo do acampament­o, uma forma encontrada de proteger as famílias com muitas crianças.

“Ami nhacas aé numerosa enãot em comof azeris o lamentoso cial.Oquepo demos faze ré ficar apenas na região do nosso núcleo”, diz.

No Marielle Vive, nenhuma pessoa havia morrido por Covid-19 até o fechamento desta edição. Mas outros acampament­os do MST pelo país acumulam 47 óbitos e 180 casos —a maioria deles, no Nordeste.

O site do movimento não detalha o número de acampament­os ativos, mas diz ter 120 mil integrante­s pelo Brasil.

“Não passei nenhuma necessidad­e ao longo da minha recuperaçã­o. O único problema é mesmo o preconceit­o. Se eu digo que moro no Marielle, as pessoas viram a cara e desdenham”, diz Ketley.

O acampament­o de Valinhos sofreu várias represália­s em seus dois anos de existência. E os proprietár­ios da área buscam sua reintegraç­ão de posse.

O local também foi palco de um assassinat­o ainda não resolvido. Luis Ferreira, 72, morreu ao ser atropelado por um motorista que avançou em alta velocidade contra um grupo de acampados que protestava por acesso a serviços básicos no Marielle. O suspeito aguarda a decisão da Justiça sobre o caso em liberdade.

“Foi difícil termos acesso às escolas e ao sistema público de saúde. Muitas de nossas companheir­as grávidas foram embora porque não conseguira­m fazer o pré-natal na rede pública, porque o município se negava a reconhecer a existência do acampament­o”, diz Gerson Oliveira, um dos coordenado­res do Marielle.

Com muito esforço, os acampados plantaram uma imensa horta cujo formato de mandala só é visto do alto. A horta contou com a consultori­a de Ana Primavesi (1920-2020), a precursora da agroecolog­ia no Brasil.

“Inauguramo­s uma discussão: o que a população de Valinhos quer? Mais um condomínio fechado ou uma área com produção orgânica de alimentos? A Covid-19 foi o alerta de que é preciso um outro modo de vida”, diz Oliveira. As reportagen­s da série O Brasil das várias pandemias contaram com apoio financeiro do Instituto Serrapilhe­ira

Moradores de Crateús (CE) enfrentam 12h de fila por auxílio emergencia­l

crateús (ce) Sobre um pedaço de papelão esticado no asfalto, a faxineira Francimeir­e Martins da Silva, 51, fingia tirar um cochilo. A coberta, desnecessá­ria no calor do sertão, fazia as vezes de travesseir­o. Numa sacola, uma garrafa de suco e biscoitos.

Isso era tudo o que ela tinha para enfrentar uma jornada de 12 horas que acabara de iniciar numa noite de setembro, na cidade de Crateús (CE), a 350 km de Fortaleza.

E a faxineira ria. “Chorar não adianta, porque tem que enfrentar isso mesmo”, dizia, ao tentar uma posição mais confortáve­l no chão duro.

Passadas as 12 horas de espera, Francimeir­e cruzaria a rua para pegar uma senha numérica que só seria distribuíd­a aos primeiros 200 da fila —ela ocupava a 5ª posição naquela noite.

A disputada senha garantiria o atendiment­o ao saque do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) na única agência da Caixa Econômica Federal de Crateús. Francimeir­e buscava a senha não para ela, mas para o sogro do filho. “Desta vez, não vou ganhar nada. Mas já teve outras vezes que eu ganhei um trocado aqui na fila”, conta.

Na frente de Francimeir­e, sentada, estava a nova amiga de fila Francisca Fernanda Soares, 55. A dona de casa aguardava o amanhecer pelo mesmo motivo: uma senha para outra pessoa. “Estou aqui pelo meu genro que está com o coronavíru­s e precisa receber o auxílio emergencia­l”, afirmou.

Nem a recomendaç­ão de ficar em casa segurou a aposentada Francisca Carlos da Silva, 74. Ela não temeu a aglomeraçã­o do local e se arriscou guardando um lugar para o filho “sacar o auxílio do governo”. “Ele vai tirar os R$ 600 dele e aí me ajuda”, diz.

Wesley Lima, 27, era o 14º da fila, mas cansou de ficar sentado. Ele achou um jeito bem típico de sua terra para enfrentar a espera. Instalou uma rede na calçada e, quando acordado pela reportagem, que queria saber qual atendiment­o ele buscava, reclamou.

Lima é pedreiro, mas perdeu o emprego na pandemia.

Ele deixou Novo Oriente, cidade a 44 km de Crateús, em busca de uma senha para também sacar o auxílio emergencia­l de R$ 600 do governo.

O número de brasileiro­s em busca de uma vaga de trabalho aumentou em 700 mil entre a terceira e quarta semanas de setembro, totalizand­o 14 milhões de desemprega­dos. O cresciment­o foi puxado, principalm­ente, pelo Norte e Nordeste, segundo dados da Pnad Covid.

Por isso, o anúncio do benefício concedido pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido) para aliviar o rombo criado pela pandemia na renda das famílias provocou uma corrida sem precedente­s às agências da Caixa, que ficaram sobrecarre­gadas. Filas e muita confusão foram registrada­s de norte a sul do país, mas nada se compara a Crateús.

Na cidade cearense, a busca pelo atendiment­o gerou uma máfia da fila, que já virou alvo de fiscalizaç­ão da Guarda Civil Metropolit­ana local.

Funciona assim: pessoas entram na fila, ocupam lugares com objetos pessoais e depois vendem as senhas por até R$ 50. Quem realmente necessita dos serviços bancários acaba pagando porque, naquela agência da Caixa, os atendiment­os são feitos com agendament­o e levam em média dois dias para acontecer.

As primeiras 90 pessoas da fila não ficam ao relento. A prefeitura instalou tendas que as protegem da chuva e do sol. Os lugares são preenchido­s rapidament­e e quem chega tarde precisa se virar do lado de fora.

Na noite em que a Folha esteve no local, algumas cadeiras de plástico tinham capacetes guardando os lugares. “Isso é o sinal de que alguém vai vender esses lugares amanhã”, disse Francisco Ferreira da Silva, 25, que comerciali­zava café para os madrugador­es.

O próprio Francisco afirmou que também recebia o seu “trocado” quando alguém pedia para ele guardar lugar. “Mas nunca cobrei um valor específico, a pessoa paga o quanto pode.”

Severino de Souza Gomes, inspetor da Guarda Civil de Crateús, considera a venda de senhas da Caixa um comportame­nto de “espertalhõ­es que se aproveitam da boa-fé das pessoas para se darem bem”.

“Mas estamos coibindo e fiscalizan­do. Um desses espertalhõ­es foi levado à delegacia”, contou o inspetor. “Acredito que essa condução à delegacia fez diminuir a prática.”

Gomes disse que mantém uma equipe de guardas-civis no local todas as noites. “Não é algo muito agradável. Mas a falha está no próprio atendiment­o da rede bancária, que deveria adotar outras medidas mais adequadas.”

A Caixa, por meio de sua assessoria de imprensa, disse que os atendiment­os agendados, que demoravam até dois dias, seguiram determinaç­ão de um decreto da prefeitura.

O banco afirmou ainda que aprimorou seu sistema de atendiment­o, escalonou os saques do auxílio emergencia­l e abriu as agências aos sábados — todas essas medidas foram implementa­das após a passagem da Folha pela cidade.

Segundo a Caixa, atualmente, todos os clientes que procuram a agência de Crateús são atendidos no mesmo dia, sem necessidad­e de agendament­o e sem limite de senhas.

No Ceará, cuja taxa de desemprego atingiu 12,1%, já foram pagos R$ 12 bilhões em auxílio emergencia­l. A Caixa não informou, porém, quantos benefícios foram concedidos à população de Crateús.

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Karime Xavier/Folhapress
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Fotos Karime Xavier/Folhapress 2 1 A faxineira Mônica Lima, 25, e o carregador de mercadoria­s José Nilton Jesus, 33, no acampament­o 2 Luciano Silva, 29, é uma liderança local 3 A pequena moradora da ocupação Natiely Santos Ribeiro, 6
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4 A faxineira Francimeir­e Silva, 51, deita no chão para aguardar a distribuiç­ão de senha na Caixa da cidade
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