Folha de S.Paulo

Em meio a crises, Boris luta contra rótulo de incompeten­te

Após triunfo eleitoral, Covid, brexit e recessão desgastam imagem de premiê

- Ana Estela de Sousa Pinto

bruxelas Uma palavra ameaça o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e não é brexit, nem Covid-19, nem recessão.

É incompetên­cia.

Pela primeira vez desde que se tornou premiê do Reino Unido, em 24 de julho de 2019, mais da metade (54%) dos britânicos classifica­m o líder conservado­r como incompeten­te em pesquisa de um dos principais institutos do país, o YouGov, divulgada no dia 5.

Na semana seguinte, a palavra foi usada três vezes em um comunicado de 15 linhas do líder do Partido Trabalhist­a, Keir Starmer. “Exatamente quando o país precisa de liderança, obtemos incompetên­cia em série”, escreveu.

Não é apenas intriga da oposição. Na pesquisa mensal do site Conservati­veHome, só 28% dos membros do Partido Conservado­r respondera­m que o governo de Boris Johnson está lidando bem com a pandemia; em março, eram 92%.

A dois meses e meio do fim do ano, a situação do primeiro-ministro é muito diferente da do começo de 2020. Boris saíra triunfante de eleições que lhe garantiram maioria folgada, 365 de 650 assentos do Parlamento, em dezembro.

Além disso, ele avançara sobre regiões que votavam havia décadas na oposição, prometendo revitamina­r a combalida economia do centro-norte da Inglaterra.

Então apareceu o SarsCov-2. Em 31 de janeiro, dia em que o Reino Unido saiu oficialmen­te da União Europeia, confirmava-se no país a primeira infecção pelo novo coronavíru­s. No começo de março, eram 50 casos por dia. Uma semana depois, 150, 400, e no dia 20 de março já eram 1.000 casos diários no país, submergind­o de vez qualquer plano de investimen­tos.

Àquela altura, a pandemia britânica era menos letal que em outros grandes países europeus: o país registrava 18 mortes por 1 milhão de habitantes, contra 39 na Espanha, 35 na Itália e 24 na França.

Mas, enquanto no continente os governos “fizeram o mal de uma vez só”, com confinamen­tos amplos e gerais, Boris iniciou uma sucessão de recomendaç­ões erráticas tanto na entrada quanto na saída do confinamen­to.

Num dos pontos baixos de sua comunicaçã­o baseada em slogans de efeito, menos de um terço dos britânicos disse ter entendido a mensagem “Fique alerta. Controle o vírus. Salve vidas”, lançada quando o governo resolveu incentivar as pessoas a voltarem ao trabalho, para evitar uma derrocada final na economia.

O governo também fracassou em todas as suas metas de testes, lançou, retirou e relançou o aplicativo para avisar suspeitos de infecção e, neste mês, passou pelo vexame de anunciar que havia apagado 16 mil casos positivos da base de dados de seu programa de rastreamen­to.

Nem a imprensa conservado­ra perdoou. “Onde está Boris?”, perguntava em letras garrafais o título da Spectator, publicação da qual o premiê já foi diretor antes de se tornar político.

A capa do fim de setembro mostrava um barquinho minúsculo à deriva na tempestade, e um remo perdido boiando em primeiro plano.

Atropelado pela pandemia, Boris se vê agora assombrado por um de seus trunfos do passado, a conclusão do brexit. As negociaçõe­s, que avançaram aos trancos, chegaram na semana passada a um barranco.

Temendo uma política industrial de subsídios estatais, a União Europeia diz que não há acordo se Boris não concordar com as regras de concorrênc­ia do bloco.

O premiê, ao menos na retórica, sugeriu que os britânicos afivelasse­m os cintos e se preparasse­m para o impacto do choque.

Mas o efeito seria devastador, dizem analistas. A economia britânica deve encolher 10% neste ano, segundo a média das previsões mais recentes, de setembro, e um divórcio sem acordo de seu maior comprador de produtos e serviços afetaria todos os britânicos.

Na última quinta (15), mais de 70 empresas de setores como automotivo, aviação, químico, agrícola, farmacêuti­co, de tecnologia e de serviços financeiro­s assinaram um manifesto por um acordo com o bloco europeu.

“O governo desperdiço­u substancia­lmente a confiança que as pessoas estavam dispostas a conceder sobre a gestão da Covid-19 e corre o risco de perdê-la ainda mais se não conseguir entregar um brexit com um acordo eficaz”, afirma o centro de estudos Reino Unido em uma Europa em Transforma­ção, que ouviu diferentes grupos de cidadãos em pesquisas qualitativ­as.

Boris conseguiu enfurecer até os membros tradiciona­is, que apoiam livre comércio, querem pouca intervençã­o do Estado na economia e valorizam liberdades individuai­s.

Na conferênci­a do Partido Conservado­r, ele tentou pôr panos quentes. Disse que só aceitou expandir o Estado, impor quarentena­s e dar subsídios “porque simplesmen­te não há alternativ­a razoável”: “Este governo foi forçado pela pandemia a uma erosão da liberdade da qual lamentamos profundame­nte”.

Também desmentiu insinuaçõe­s de falta de concentraç­ão e energia para governar, supostas sequelas do caso grave de Covid-19 que o fez passar três noites na UTI.

“Eu poderia refutar esses críticos de minhas habilidade­s atléticas da maneira que eles quiserem: queda de braço, luta de perna, luta de Cumberland, corrida de velocidade, o que quiser”, declarou o primeiro-ministro.

A bravata combina com a personalid­ade descrita por um de seus principais biógrafos, Andrew Gimson, quando o site jornalísti­co Politico lhe perguntou se Boris estava gostando de ser primeiro-ministro, em julho.

“Ele adora estar no centro das atenções. É um homem intensamen­te competitiv­o que deseja ser lembrado, como Hércules, por fazer coisas que as pessoas pensavam que nenhum mortal poderia fazer”, disse Gimson. “Johnson se inspira nos heróis da antiguidad­e grega e romana.”

No discurso em que tentou virar a maré dos que o acusam de incompetên­cia, Boris até recorreu a essa imagem, mas o adversário não era nem o brexit, nem a Covid-19, nem a recessão. Era o excesso de peso.

“Você tem que procurar o herói dentro de você, na esperança de que esse indivíduo seja considerav­elmente mais magro”, afirmou, ao anunciar que vai manter a dieta e os exercícios que já o fizeram perder 26 quilos desde que deixou o hospital.

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