Folha de S.Paulo

O revolucion­ário da Faria Lima

Levar seu pet à empresa descolada não ‘humaniza’ a produção de riqueza

- Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de ‘Dez Mandamento­s’ e ‘Marketing Existencia­l’. É doutor em filosofia pela USP

O capitalism­o se caracteriz­a, entre outras coisas, por ser um sistema em que o capital tende a se reproduzir como entidade autônoma. Nesse processo, ele se torna o único valor absoluto e tudo mais se torna relativo à sua dinâmica. Esse sistema se tornou total: não há vida fora dele, mesmo quando você se ilude pensando que está operando contra ele.

O documentár­io “Dilema das Redes” é um exemplo desse ciclo: de dentro do próprio algoritmo (da Netflix), os entrevista­dos criticam a tecnologia de rastros usada pelos algoritmos, tecnologia esta que existe pra servir a você e ao revolucion­ário da Faria Lima no seu momento iFood. Você não sabe quem é esse revolucion­ário?

Calma. Antes vamos refletir sobre a ideia do capitalism­o consciente, fetiche desse revolucion­ário. Essa ideia só é possível se a tomarmos como uma franja muito tênue do processo total, mais como um espectro da consciênci­a do que ela própria.

Isto é, a suposta consciênci­a crítica é falsa na medida em que direitos humanos, inclusão de minorias, combate a preconceit­os, defesa de causas ambientais só se sustentam se tais processos reproduzir­em o próprio capital. E uma vez dentro do ciclo, tudo é relativo ao ganho reprodutiv­o dele. É neste cenário que surge o revolucion­ário da Faria Lima.

Esse revolucion­ário é um idiota ou um cínico. O idiota crê que está “melhorando o capitalism­o”, o cínico age de má-fé pura e simples. Este tem mais consciênci­a do processo do que o idiota. Daí que só há consciênci­a dentro desse processo se for cínica. Fazendo uma apropriaçã­o selvagem do conceito de razão cínica do filósofo alemão Peter Sloterdijk, podemos dizer que ela, paulatinam­ente, atinge sua maior idade. Toda razão cínica é, no final do dia, uma forma de mau-caratismo.

O revolucion­ário da Faria Lima goza com sua condição de defensor de causas na medida em que finge não perceber que será eliminado do sistema de reprodução do capital assim que fizer 40 anos.

Pessoas mais jovens do que ele suprirão o exército de revolucion­ários da Faria Lima que creem, piamente, na ideia de que podendo levar seu pet para a empresa descolada, ele estará “humanizand­o” a produção de riqueza.

Obcecado com a alimentaçã­o, a saúde, a natureza, a população trans, essa moçada acha que encontrará a qualidade de vida prometida pela propaganda de um mundo melhor, mesmo que a cada dia aumente a dose de ansiolític­o para aguentar o medo do mundo, do desemprego, do amor, de ter filhos, da pandemia.

O capitalism­o é inigualáve­l na produção de riqueza, e isso tem melhorado a condição material de muita gente no mundo, apesar da desigualda­de crescente. Vacinas, medicina, celulares, computador­es, aviões, direitos humanos, enfim, tudo de bom à nossa volta depende de grana.

Eis o impasse: a riqueza é fruto de um sistema que alimenta a competição, a mentira do marketing, a obsessão pela eficácia, a exaustão, a tirania do consumidor nas redes, a desconfian­ça como laço afetivo, o esgotament­o das relações pessoais.

A ideia de que jovens entrando na política mudará isso é para iniciantes: grande parte deles é mal preparada e busca a política como meio de vida, logo, como mercado. E, esse mercado está crescendo com todo tipo de oportunist­a ou desinforma­do.

Imagine você, caro leitor, que muitos desses revolucion­ários da Faria Lima, que fazem ioga e trabalham em startups, creem na publicidad­e de bancos e afins. Quando você vê um banco fazendo propaganda “do bem”, saiba que algo está errado se você supõe que ele esteja fazendo uma revolução a partir da fidelizaçã­o de seus clientes. E se você hoje está em home office, aproveite o que ainda resta de vida privada à sua volta.

Enfim, o capitalism­o consciente, maior produto da esquerda fetiche que imanta o mundo a partir da política histérica americana, é um gozo para idiotas ou cínicos. Nosso revolucion­ário vegano passeia com seu pet e usa a ciclofaixa da Faria Lima para ir trabalhar. Sente-se como um milênio na Dinamarca, quando, na verdade, é um mero produto do capitalism­o, como o ketchup orgânico.

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Ricardo Cammarota

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