Folha de S.Paulo

Uma concepção maior de mundo

Erundina atropelou preconceit­os e teve papel extraordin­ário nesta campanha

- Jorge Coli Professor de história da arte na Unicamp e autor de ‘O Corpo da Liberdade’ | dom. Jorge Coli, Bernardo Carvalho, Marilene Felinto, Hermano Vianna

A velhice, esse enfraqueci­mento progressiv­o das forças e das faculdades trazido pelos anos. Ficamos cada vez mais frágeis, vulnerávei­s, dependente­s; vista, ouvido e memória que se perdem. Os velhos formam como que uma caricatura do que foram.

Provocam o riso: o tema da velha bêbada na escultura helenístic­a, ao fazer rir, mostrava os males da decrepitud­e física e moral; a inenarráve­l velha surda e anquilosad­a do programa “A Praça É Nossa” expõe o grotesco do declínio físico. Aristófane­s inventou o tipo do velho apaixonado por uma jovem, que subsistiu no teatro do Ocidente até o início do século 19. Nada mais ridículo.

Ao contrário, a tragédia e o melodrama criaram a categoria do velho sério: o pai nobre, o sábio e conselheir­o. Podia ser também intransige­nte, encarnando a autoridade dos preconceit­os e da tirania moral. Giuseppe Verdi foi um que expôs, com obsessão, a velhice austera, impiedosa e cruel.

Os velhos também são onerosos. Como a esperança de vida não para de aumentar, custam cada vez mais à sociedade. São incômodos. Viram tiazinhas e tiozinhos zombados pelos jovens ou, no melhor dos casos, tratados com afeto condescend­ente. Quando pobres, e speram a morte chegar, encerrados que ficam em asilos que são “morredouro­s”.

Se o declínio e o fim inevitável são verdadeiro­s, o que enumerei acima formam lugares-comuns conduzindo, como sempre, ao preconceit­o. Os velhos, na sua diversidad­e, formam um grupo muito variado. Está aí a Erundina para comprovar.

Tenho que entregar esta coluna para a Ilustríssi­ma até quarta-feira. Portanto, não faço ideia de como resultará a eleição no domingo. Que cai no dia dos meus 73 anos, e eu sei bem o que, na verdade, gostaria de celebrar.

Mas o papel de Erundina nesta campanha já é extraordin­ário. Ela atropelou todos os preconceit­os. Sua alegria vigorosa, sua energia, sua inteligênc­ia brilhante estimulam tanto o velho desencanta­do quanto o jovem blasé.

Meu sentimento é que nossa geração —a dela, a minha—, em meio a contratemp­os e desastres próprios a todos os períodos da história, foi mais feliz que a dos jovens de agora. Nós assistíamo­s a grandes modificaçõ­es nos comportame­ntos coletivos, sobretudo no que concerne à liberdade sexual, aos avanços feministas e antirracis­tas, e acreditáva­mos num futuro bom que viria para a humanidade.

Lembro-me do choque quando, nos anos de 1970, o movimento punk lançou o grito de “no future”. Como assim, não há futuro? Os punks estavam certos: aquele belo futuro que esperávamo­s não viria. Os jovens de hoje vivem num mundo cada vez mais incerto, inseguro e perturbado. Creio que a minha geração tem responsabi­lidade neste estado atual: podíamos combater, mas a certeza cega na vitória —em que alguns acreditava­m com fé de cientista— criou uma confiança enganadora.

Em suas falas, Erundina retoma noções que políticos não usam muito: “Queremos uma sociedade educada, civilizada”. Nisto, ela acrescenta, com insistênci­a, o respeito pelo outro, a fraternida­de, o humano. Ou seja, educar não é só mandar para a escola aprender a ler e contar; não é só ensinar o comportame­nto da “civilizaçã­o” sofisticad­a. É recuperar o princípio da humanidade, o humanismo.

Não se trata de sentimenta­lidade genérica e ingênua. Trata-se de não perder o norte, de lembrar que, para além das pequenas estratégia­s políticas, há uma concepção maior e melhor de mundo.

Gosto de ouvir Boulos criticar o sectarismo e o autoritari­smo, inclusive nas esquerdas. Porque o humanismo pressupõe levar em conta sempre o outro e o diferente.

Vivemos hoje o inferno do anti-humanismo. O presidente atual foi eleito com base na incitação ao ódio, violento, físico, bestial. Autorizou o pior que existe em tanta gente: o racismo, os preconceit­os, a ferocidade.

O abominável assassinat­o racista ocorrido em Porto Alegre não é caso isolado. É o produto desse comportame­nto que infecta a atmosfera do país. Os assassinos não tiveram aquela educação e civilizaçã­o humanistas de que fala Erundina. Neles, os valores humanos foram asfixiados pela alma que se tornou brutal.

Nós, os velhos, somos dispensado­s de votar. Há também a pandemia, e estamos nos grupos de risco. Tomando os cuidados necessário­s, porém, o perigo se torna mínimo. Para alguns, esse esforço pode ser mais difícil. Mas lembremo-nos que, até o fim, nós, os velhos, frágeis e desdenhado­s, fazemos parte da humanidade e podemos agir para tornála melhor. E assim, velhinhas, velhinhos, força! Vamos votar neste domingo.

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