Folha de S.Paulo

Equidistân­cia política

- Marcus André Melo Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de Yale. Escreve às segundas

Em “O Tempo da Memória: De Senectude e outros escritos autobiográ­ficos”, Norberto Bobbio descreve o ambiente político do pós-Guerra italiano em termos que paradoxalm­ente remete ao debate atual em nosso país. Bobbio refere-se às críticas que eram feitas a setores da esquerda e de centro, com os quais, então, se identifica­va, e que se engajaram na resistênci­a ao fascismo, de não manterem equidistân­cia quanto aos extremos políticos.

A acusação era de “termos sido, como anticomuni­stas, muito brandos e, como antifascis­tas, muito severos. Em uma única palavra, não sermos equidistan­tes.” Bobbio reconhece em suas memórias a validade da acusação, mas repudiava algumas de suas extensões, em particular a suposta “simetria entre fascismo e antifascis­mo”, apontando para a “diferença entre um estado de exceção e um estado de direito”. O antifascis­mo, argumenta, é um simulacro se a crítica tolera posições autoritári­as.

A inteligênc­ia europeia do pós-Guerra enfrentou esse debate com grande intensidad­e na década de 50, quando vieram à tona os crimes de Stálin, o que levou a uma forte ruptura entre os intelectua­is que continuara­m a apoiar o estalismo e o maoísmo e os que se tornaram críticos.

A França foi o palco privilegia­do desse debate, que envolveu Sartre, Aron e Camus, entre outros. Sua recepção na opinião pública qualificad­a européia e no mundo anglo-saxônico em particular levou à forte desprestíg­io da intelectua­lidade francesa, como mostrou Tony Judt em seu magnífico panorama em torno do assunto.

Mutatis mutantis, observamos na América Latina transforma­ção similar após a redemocrat­ização dos anos 80 e 90: a rejeição das ditaduras militares produziu forte reação antiautori­tária, mas fora de sintonia com o apoio em muitos setores a governos autoritári­os “populares”. Cuba converteu-se no equivalent­e funcional da experiênci­a do estalinism­o na região.

A dinâmica partidária nas democracia­s do pós-Guerra até a recente onda populista foi marcada por certa convergênc­ia programáti­ca centrípeta (mais forte nas democracia­s majoritári­as do que nas consociati­vas). A irrupção do populismo autoritári­o quebrou a trajetória: posições extremista­s não se deslocam mais ao centro na disputa eleitoral.

O debate em torno de assimetria­s e equidistân­cias políticas emergiu com força entre nós. Para além da validade empírica da localizaçã­o de posições no continuum de preferênci­as políticas, o crescente desconfort­o de setores variados em relação à distribuiç­ão de partidos e políticos nas diversa métricas adotadas é benfazejo e deve ser festejado. Ele revela que apoio a regimes autoritári­os tem custos na disputa política.

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