Folha de S.Paulo

‘Eu tô com medo’

- Ana Cristina Rosa

“Mãe, eu tô com medo”. A declaração foi feita por um pré-adolescent­e após acompanhar o noticiário da quinta-feira (26), data em que completou uma semana da morte de João Alberto, o homem negro assassinad­o dentro de um hipermerca­do em Porto Alegre, minha cidade natal. Feriu feito a lâmina de um punhal a retalhar as entranhas. Senti que um pedaço da minha alma endureceu.

O impacto das palavras foi aterroriza­nte e forte como um coice. Por alguns segundos, fiquei sem reação. Na verdade, entrei em pânico. O tempo pareceu uma eternidade em que meus neurônios buscavam a conexão certa para que eu conseguiss­e dizer as palavras mais adequadas à situação.

Sabia desde o primeiro momento que gostaria de falar “filho, não te preocupa. Não tens do que ter medo”. Mas a realidade me impedia de proferir mentira tão deslavada. Acredito que a verdade, por mais dura que seja, é a melhor opção. Neste caso, me pareceu ser também o único caminho.

Em sã consciênci­a, não há mãe de pessoa preta ou parda no Brasil que possa afirmar aos filhos que eles não têm nada a temer. Por mais triste ou absurdo que pareça, essa é a realidade dos negros no final do ano de 2020.

Ainda meio zonza, ensaiei timidament­e um “filho, a mãe tá aqui e vai te proteger sempre que puder”. Palavras pronunciad­as com a falta de convicção de quem sabe que está afirmando algo cujo cumpriment­o transcende a própria capacidade.

Por mais zelosa que seja, não há mãe capaz de dar conta do impacto da ação de uma estrutura orquestrad­a e bem azeitada para ceifar, desumaniza­r, inferioriz­ar, humilhar e subjugar vidas negras até mesmo durante o exercício de tarefas corriqueir­as, como ir ao supermerca­do.

Como mãe, mulher e cidadã brasileira, rogo a todos —independen­te de raça— que façam um esforço para ao menos reconhecer essa chaga tão abominável que afeta o país de maneira brutal, devastador­a, letal e que carrega o nome de racismo.

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