Folha de S.Paulo

Crime de racismo esbarra em interpreta­ção

Operadores do direito tendem a considerar que há crime de racismo apenas quando ele é explícito e declarado

- Renata Galf

são paulo O assassinat­o brutal de João Alberto Freitas por seguranças do supermerca­do Carrefour no dia (19) trouxe à tona o debate sobre o enquadrame­nto do racismo pela lei.

Segundo a chefe da Polícia Civil, Nadine Anflor, embora seja impossível negar que o racismo estrutural exista, é precoce neste momento elucidar o caso, e afirmou que a motivação está sendo investigad­a.

Parte dos especialis­tas consultado­s pela Folha entende que não é preciso uma manifestaç­ão racista explícita para que se configure crime de racismo. Principalm­ente no contexto brasileiro em que o racismo tende a ser velado, muitos dos casos não terão uma vocalizaçã­o da motivação racista, o que não impede o enquadrame­nto na lei.

Por outro lado, mesmo entre aqueles que veem relação entre o racismo e a morte de Beto Freitas, há quem considere que não há elementos suficiente­s para que esteja configurad­o o crime de racismo.

O juiz do TJ-SP Guilherme Madeira Dezem, por exemplo, afirmou em rede social que “há uma confusão sendo feita: crime de racismo e racismo estrutural”. “Falar em crime de racismo implica em falar em algumas das condutas da lei 7716/89”, escreveu, “[mas] até agora não aparece nenhuma conduta dessa. No entanto, isso não impede que pensemos além do jurídico. Aí entra o racismo estrutural”.

À Folha, Dezem explicou que, em sua interpreta­ção, seria preciso manifestaç­ão concreta, como uma fala racista ou uma camiseta com dizeres racistas, para que a motivação racial fosse comprovada.

“O que me parece que aconteceu no supermerca­do é um homicídio que demonstra a existência disso que os estudiosos chamam de racismo estrutural, que é aquele racismo incito na estrutura da sociedade. Quantos brancos vocês veem sendo mortos desta forma por seguranças de supermerca­dos?”, afirmou.

Especialis­tas que estudam a criminaliz­ação do racismo discordam. A professora de direito da PUC-Rio Thula Pires considera que o contexto é importante para configuraç­ão do crime de racismo, assim como em casos envolvendo sexismo e transfobia.

Para ela, os órgãos do sistema de Justiça se utilizam de saídas supostamen­te técnicas para produzir escudos em relação a condutas e manifestaç­ões de racismo.

“Para analisar a conduta criminosa, não se pode desvincula­r a maneira pela qual aqueles seguranças produzem violência sobre o João Alberto numa sociedade como a brasileira, não se pode desvincula­r isso do tipo de violência que foi perpetrada, porque as pessoas são pessoas em contexto”, disse.

“Se aqueles seguranças agiram como agiram, sendo observados por outras tantas pessoas e com a segurança de que era possível fazer aquilo, isso só pode ser explicado a partir do contexto do racismo na sociedade brasileira.”

Segundo Pires, consideran­do a maneira como o racismo opera no Brasil, caso só se admita que há crime de racismo com atos e falas explícitas, a comprovaçã­o será dificultad­a.

“Se a gente começar a admitir o dolo só na hipótese de entrar na mente dos agressores, a gente nunca vai conseguir comprovar a existência desses crimes, que são crimes que redundam em mortes.”

Ela complement­a: “Os crimes são concretos, o ódio é concreto. A gente não pode tomar isso [a falta de uma vocalizaçã­o do racismo] como um sintoma de uma subjetivid­ade que não é passível de ser percebida, de ser apreendida”.

A juíza do TJ-RS Karen Luise Pinheiro não comentou o caso de Beto Freitas, mas disse que considera importante que toda a sociedade brasileira passe por um letramento racial “para que as pessoas possam fazer a leitura das normas que temos disponívei­s, com o devido cuidado, com a devida atenção para que se faça o enquadrame­nto legal”.

“Digo isso não apenas aos operadores do direito. Toda a sociedade tem que passar por letramento racial.”

Ela aponta que, em contraposi­ção a países em que houve políticas segregacio­nistas como os EUA, no Brasil, o racismo ser deu por denegação. O termo é usado pela intelectua­l Lélia Gonzales, que combateu o mito da democracia racial, amplamente difundido no Brasil na ditadura militar.

“No racismo por denegação, as coisas parecem não ser evidentes, porque elas operam negando-se o racismo e operam com as pessoas tratando como se esse fosse o modo natural de funcioname­nto das coisas”, afirma.

A Constituiç­ão determina que “a prática do racismo constitui crime inafiançáv­el e imprescrit­ível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

Abaixo dela está a lei 7.716/89, que definiu condutas que configurar­iam crime de racismo. Entre elas estão “negar ou obstar emprego em empresa privada” e “impedir acesso a estabeleci­mento comercial” por motivo de discrimina­ção ou preconceit­o.

Além das condutas específica­s, há o artigo 20, de redação mais aberta, incluído na lei em 1997: é crime “praticar, induzir ou incitar a discrimina­ção ou preconceit­o de raça, cor, etnia, religião ou procedênci­a nacional”.

Já a injúria racial está elencada dentro dos crimes contra a honra, e o STF (Supremo Tribunal Federal) examina, em um processo em julgamento neste momento, se ela deve também ser crime imprescrit­ível, como o racismo.

Apesar de o dispositiv­o permitir interpreta­ção, o professor de direito e coordenado­r do Programa Direito e Relações Raciais da UFBA, Samuel

Vida, aponta que dificilmen­te o Judiciário, Ministério Público e demais operadores do direito utilizam o artigo 20 da lei.

“Todas as vezes que as manifestaç­ões, a exemplo do acontecido com João Alberto, não comportam uma verbalizaç­ão expressa, nós temos uma dificuldad­e monumental e quase sempre há uma reclassifi­cação para outro delito”, afirmou.

Samuel Vida entende que não é preciso a manifestaç­ão expressa para que se configure o crime de racismo.

“Em situações como o assassinat­o de João Alberto, sempre se colocam como argumentos que não houve motivação racial porque não houve explicitaç­ão do ódio racial”, diz.

“Entretanto, em nenhum momento, seja a Constituiç­ão, sejam as análises das ciências sociais sobre o racismo, a vocalizaçã­o da intenciona­lidade racial se coloca como condiciona­nte ou como requisito imprescind­ível para a qualificaç­ão do racismo.”

Ele defende que a lei seja alterada, permitindo que também de empresas e instituiçõ­es possam ser enquadrada­s pelo crime de racismo, a exemplo do que acontece com crimes ambientais.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil