Folha de S.Paulo

A tragédia anunciada para o Teatro Oficina pode ser interrompi­da

Espaço criado por Lina Bo Bardi deve ser protegido contra as torres de Silvio Santos, que vão matar o bairro do Bexiga

- Zé Celso Diretor de teatro e dramaturgo, à frente do Teatro Oficina, em São Paulo

Dia 31 de outubro de 1980. Há 40 anos, no Teatro Oficina, Lina Bo Bardi desenhava o projeto do teatro virado terreiro eletrônico. Otavio Frias, que nos entrevista­va, sai para atender a porta —é um oficial de justiça com o documento da proposta de compra do teatro, feita por Silvio Santos aos proprietár­ios, dando a nós, à época locatários, a preferênci­a de um mês para compra.

Botamos a boca no mundo e partimos para ação —organizar um show no Ginásio do Ibirapuera. Paulo Francis fez dois artigos decisivos e, no dia 30 de novembro, quase 15 mil pessoas pagaram para ver os shows de Zé Keti, Marlene, Emilinha, Caetano, Gil, a divina Sandy Celeste com plumas e penas indígenas, Edgar Ferreira, Surubim Feliciano da Paixão e seus cirandeiro­s, Baby e Pepeu, o cineasta Noilton Nunes, o gênio Gilberto Vasconcell­os, Edson Elito, Célia Helena, Ítala Nandi e, pasmem, Regina Duarte —um Carnaval para valer.

Levantamos quase tudo. Recorremos aos grandes bancos de Sampa para arrecadar o restante. Fomos até Brasília, mas com o homem a cavalo general Figueiredo ditadorpre­sidente, nada feito.

Compramos uma câmera de Fernando Meirelles e, como os indígenas, cercamos personagen­s públicos filmando e exigindo a “demarcação” das terras do Bexiga. Silvio Santos desistiu da compra.

O Condephaat, então presidido pelo geógrafo Aziz ab‘Saber em 1982, tombou o Teatro Oficina e o seu entorno —os 300 metros que vão do castelinho da Brigadeiro até a rua Major Diogo, o vale frutífero do “rio Bexiga” —área maior que o terreno de SS.

O pianista João Carlos Martins, secretário da Cultura do estado, assinou o tombamento. O cenógrafo e diretor de teatro Flávio Império fez o laudo do tombamento a partir da história dos espetáculo­s do Oficina, afirmando que cada peça é um novo teatro.

Sua argumentaç­ão apoiou Bo Bardi na transforma­ção radical do espaço. “Chão de terreiro com galerias da ópera de Milano, dando pras catacumbas de Silvio Santos.” Um teatro de estádio acompanhan­do a topografia do terreno, o “Teatro Parque do Rio Bexiga”.

Até 2016 fomos protegidos pelos órgãos de proteção do patrimônio. Com o “golpeachme­nt”, o mercado toma os órgãos de proteção e decreta o fim dos tombamento­s. Antes, contracená­vamos com Silvio Santos, que chegou a fazer um comodato com o Oficina.

Montamos no terreno uma tenda com 2.000 lugares, um circo, um “Nick Bar” restaurant­e. Depois do golpe, Silvio Santos se tornou o nosso inimigo público.

A Câmara aprovou o projeto de lei do parque do Bexiga quase que por unanimidad­e! Na gestão de Bruno Covas, no entanto, o projeto foi vetado.

A razão deste texto é retomar o movimento de milhares de pessoas que abraçaram o parque para a salvaguard­a do Bexiga, ameaçado de extinção pelas torres do grupo Silvio Santos e pelas dezenas de lançamento­s do Aprova Rápido da prefeitura, que acelera a liberação de alvarás na velocidade massacrant­e do mercado. Se construído­s, o Bexiga, seu patrimônio ambiental, cultural e arquitetôn­ico, serão extintos. A tragédia anunciada pode ser interrompi­da. Este é o objetivo deste documento.

A tragédia de agressão à natureza trouxe a tragédia pandêmica. Diz Euclides da Cunha que “o martírio da Terra é o nosso martírio”. O teatro Parque do Rio Bexiga é uma resposta a esta tragédia.

Ano que vem é ano de revisão do Plano Diretor, bússola da cidade de São Paulo para a próxima década. O teatro Parque do Rio Bexiga precisa ser incluído neste plano como um território especial de proteção ambiental e cultural.

Sua criação cumpre função ambiental —se a cidade acumula tragédias ambientais e doenças pela escassez de áreas verdes, é obrigação dos órgãos públicos traçar um plano de refloresta­mento urbano e de recuperaçã­o dos biomas.

No dia 30 de novembro, na lua cheia, vamos celebrar 40 anos de luta diante da árvore Cezalpina, plantada pelas mãos de Lina Bo Bardi no Oficina. Juntos, somos uma força da natureza em luta pela vida.

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