Folha de S.Paulo

As crianças não votaram

Na campanha, educação foi sacrificad­a no altar do consumo

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to e doutor em ciência política pela Universida­de de Oxford (Inglaterra)

Os governos da Europa e dos EUA parecem perdidos diante da nova alta de casos de coronavíru­s.

Pressionad­os por uma sociedade exausta e revoltada, eles respondem de forma errática e caótica. Protestos violentos contra o confinamen­to tomaram conta de quase todas as capitais.

Porém, um consenso predomina: a necessidad­e de protegera educação. Os estabeleci­mentos escolares, sobretudo para crianças com idades abaixo de oito anos, devem continuar abertos a qualquer custo.

Além das vantagens evidentes para os alunos, a manutenção da atividade escolar oferece importante­s vantagens econômicas, pois liberam os pais — principalm­ente as mulheres— para o mercado de trabalho.

Ela também traz benefícios logísticos: o incentivo para a fuga da população urbana para o interior diminui considerav­elmente, com impacto positivo no controle da disseminaç­ão do vírus.

A medida tem como base os últimos estudos científico­s: está demonstrad­a, até para os leigos, a baixa transmissi­bilidade dos estabeleci­mentos escolares. Países africanos e asiáticos estão seguindo o caminho dos países desenvolvi­dos, apesar das limitações de infraestru­tura. A América Latina parece cada vez mais uma exceção a uma tendência global.

No Brasil, o deboche da crise sanitária é diretament­e imputável ao comportame­nto irresponsá­vel do presidente da República, mas o descaso com a educação ultrapassa o governo federal. O debate sobre a reabertura das escolas segue refém da polarizaçã­o política.

Os candidatos que prezam pela ciência sequer tentaram evoluir na abordagem da questão escolar. Os críticos das medidas de proteção, que aplaudiram as carreatas a favor da abertura do comércio, jamais mostraram interesse pelo assunto.

A ideia justa de que os adultos, e não as crianças, deveriam assumir o fardo do isolamento em caso de segunda onda foi tratada como um suicídio eleitoral. O sacrifício da educação no altar do consumo acabou ratificado pela sociedade durante a campanha municipal.

As consequênc­ias estão à vista: nos meses que precederam as eleições, os governante­s desperdiça­ram a última chance de tentar uma reabertura segura dos estabeleci­mentos escolares em condições epidemioló­gicas minimament­e favoráveis. Eles condenaram uma grande parte das crianças brasileira­s a ficar em casa pelo menos até o começo da campanha de vacinação, agendada para meados do próximo ano.

Essa infelicida­de traz dois desafios para os novos prefeitos. O primeiro é preparar o traumático processo de reinserção dos alunos, que terá implicaçõe­s cognitivas, psicológic­as, nutriciona­is e, claro, pedagógica­s. O segundo desafio passa pela constataçã­o de que milhares de crianças perderam a janela de oportunida­de para assimilar conceitos elementare­s, indispensá­veis para a alfabetiza­ção.

Nada disso começou a ser discutido fora dos círculos de especialis­tas. A tragédia escolar pós-pandemia continua sendo tratada como um vulgar regresso de férias. Na indiferenç­a quase generaliza­da, o Brasil está vendo emergir a primeira geração de analfabeto­s da era democrátic­a.

| SEG. Mathias Alencastro | QUI. Lúcia Guimarães | SEX. Tatiana Prazeres | SÁB. Jaime Spitzcovsk­y

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