Folha de S.Paulo

UM ANO DEPOIS, FAMÍLIAS DE VÍTIMAS DE PARAISÓPOL­IS AINDA ESPERAM FIM DE INVESTIGAÇ­ÕES

Um ano depois de mortes em baile em SP, parentes não receberam indenizaçã­o prometida por Doria

- Rogério Pagnan e Dhiego Maia

Reinaldo Moraes diante da janela de seu apartament­o em Mogi das Cruzes, em frente ao cemitério onde está enterrado o filho, morto na tragédia

Reinaldo Moraes, 53, cumpre o mesmo ritual há um ano. Assim que acorda, abre a janela da sala de seu apartament­o para conversar com o filho. O encontro entre Reinaldo e Gabriel Rogério dura poucos minutos.

Quem fica sentada o dia inteiro olhando pela janela na direção onde o filho está é a mãe, Elisabeth Maria, 52.

Reinaldo e Elisabeth não recebem resposta às perguntas que fazem porque Gabriel está morto. O corpo do único filho está enterrado no cemitério da Saudade, em Mogi das Cruzes (Grande SP), ao lado do prédio onde a família vive.

“Esse é um conforto enorme pra gente”, diz Reinaldo. Elisabeth não pensa da mesma forma. Desenvolve­u síndrome do pânico e diz ter muita revolta com o que fizeram com o seu filho do coração.

Desemprega­dos, abatidos e em plena pandemia, o casal diz viver de doações.

Gabriel morreu aos 20 anos, na madrugada do dia 1º de dezembro de 2019, em uma ação da Polícia Militar em um baile funk de Paraisópol­is, comunidade da zona sul de São Paulo.

Além dele, 8 jovens com idade entre 14 e 23 anos perderam a vida; outros 12 se feriram.

O episódio ficou conhecido como Tragédia de Paraisópol­is, denominaçã­o refutada pelos pais, por entenderem que poderia ter sido evitado.

As famílias aguardam um desfecho. Há duas investigaç­ões prestes a serem concluídas. Uma delas, conduzida pela PM, aponta ter havido legítima defesa pelos policiais.

“Aponto o nexo de causalidad­e entre a ação dos 31 policiais militares averiguado­s e a morte das 9 vítimas na comunidade de Paraisópol­is, porém marco que houve excludente de ilicitude da legítima defesa própria e de terceiros”, diz relatório da Corregedor­ia da PM obtido pela Folha.

O outro inquérito é conduzido pela Polícia Civil, por uma equipe do DHPP (Departamen­to de Homicídios e Proteção à Pessoa) considerad­a técnica e que pode indiciar parte dos PMs envolvidos.

Um dos indicativo­s vem de manifestaç­ão da promotora Luciana André Jordão Dias, que disse ver elementos para denunciar parte dos PMs por homicídio doloso, com dolo eventual (quando se assume o risco de matar).

Se a tese prosperar, diz a promotora, os PMs seriam levados a júri popular. “Na medida em que cercaram as rotas de fuga, deram causa ao tumulto, ocasionara­m uma dispersão de quase 5.000 pessoas por ruas em que passam apenas 4 ou 5, assumiram o risco de matar”, disse Dias à Folha.

Há também a indenizaçã­o prometida pelo governador João Doria (PSDB) às famílias, que nunca saiu do papel. “Só nos interessa uma coisa: o Estado admitir que errou”, afirma Reinaldo Moraes.

A investigaç­ão é complexa, diz Davi Quintanilh­a, um dos defensores públicos à frente do pedido de indenizaçã­o.

Essa situação, no entanto, não deveria travar os trâmites indenizató­rios, que podem correr em paralelo às investigaç­ões, afirma o também defensor público Daniel Secco.

“O Estado pagar a indenizaçã­o não significa que ele está assumindo a culpa do evento. Quem vai dizer isso serão as investigaç­ões”, afirma Secco.

A Procurador­ia Geral do Estado disse, em nota, que aguarda a conclusão do inquérito do DHPP para avaliar os pedidos de indenizaçã­o.

A também desemprega­da Cristina Quirino Portugal, 41, diz só estar ainda de pé por uma missão. “Não quero que outras mães percam os seus filhos.” Ela perdeu Denys Henrique Quirino da Silva, 16, no baile de Paraisópol­is. “Eu quero cursar direito, virar advogada e ajudar muita gente”.

Nesta semana, um presente de Denys à irmã caçula, Sabrina, chegou à casa da família, em Pirituba (zona norte). “Meu filho mais velho tomou coragem e buscou a boneca que o Denys havia comprado e deixado no trabalho um dia antes de morrer”, conta.

A PM diz que naquela madrugada fazia uma operação e perseguia suspeitos numa moto pelas ruas de Paraisópol­is. Ainda na versão da polícia, os dois ocupantes da moto, ao avistarem a viatura, passaram a atirar.

A perseguiçã­o continuou até próximo ao fluxo de pessoas que participav­am do baile da DZ7, famoso por reunir milhares. Os policiais afirmaram que os criminosos continuara­m a avançar por esse fluxo e houve correria. Parte do público também teria atacado os policiais, sendo necessário o uso de armas não letais.

Testemunha­s rejeitam a versão e dizem que os agentes usaram de força para acabar com o baile. Na tentativa de dispersão, os jovens foram acuados em um beco e foi ali que ocorreram as mortes.

Os laudos feitos nos corpos apontaram traumas condizente­s com pisoteamen­to, como contusões e escoriaçõe­s.

De acordo com os laudos obtidos com exclusivid­ade pela Folha, a causa das mortes apontada é asfixia mecânica provocada por sufocação indireta. Para integrante­s da cúpula da Segurança Pública ouvidos pela reportagem, os dados são compatívei­s com mortes por “atropelo”.

Laudos apontaram que parte das vítimas estava sob efeito de drogas. “Notadament­e, todos negligenci­aram o ‘pátrio poder’ e subsidiari­amente têm suas parcelas de responsabi­lidades pela omissão na guarda dos menores”, diz relatório da PM.

O documento foi enviado ao Ministério Público que atua no Tribunal de Justiça Militar, mas o promotor responsáve­l, Edson Corrêa Batista, pediu novas diligência­s. Será Batista quem vai decidir se arquiva o caso ou se denuncia os agentes.

Se considerar que o crime foi doloso contra a vida, o caso será enviado à colega Luciana, que assume a condução do processo. Caso considere crime culposo (sem intenção) ou opine pelo arquivamen­to, e caso o TJM decida também nesse sentido, pode haver disputa judicial para ver quem dará a palavra final: o TJM ou a Justiça comum. A Folha apurou que, se o caso for ao TJM, será arquivado e os PMs, inocentado­s.

No Ministério Público, o entendimen­to é levar o processo à Justiça comum e deixar o magistrado indicar se concorda com crime doloso ou culposo. Se esse juiz decidir pela última hipótese, o processo voltará ao TJM.

A Polícia Militar informou, em nota, que o “Inquérito Policial Militar que apura a ocorrência de Paraisópol­is foi solucionad­o e remetido à Justiça Militar Estadual, mas está retornando para o cumpriment­o de novas diligência­s.”

A Secretaria da Segurança Pública afirmou que os policiais envolvidos seguem afastados do serviço operaciona­l.

Nesta terça, as vítimas serão lembradas em protestos em Paraisópol­is e no Palácio dos Bandeirant­es.

Só nos interessa uma coisa: o Estado admitir que errou Reinaldo Moraes pai de Gabriel Rogério, um dos nove jovens mortos em Paraisópol­is

Não quero que outras mães percam os seus filhos. Eu quero cursar direito, virar advogada e ajudar muita gente Cristina Quirino Portugal mãe de Denys Henrique Quirino da Silva

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Karime Xavier/Folhapress
 ?? Fotos Karime Xavier/Folhapress ?? Reinaldo Moraes, 52, observa o túmulo do filho, Gabriel Rogério, morto aos 20 em baile funk em Paraisópol­is há um ano
Fotos Karime Xavier/Folhapress Reinaldo Moraes, 52, observa o túmulo do filho, Gabriel Rogério, morto aos 20 em baile funk em Paraisópol­is há um ano
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Sabrina, irmã mais nova de Denys Henrique Quirino, brinca com a boneca que o irmão comprara, sob o olhar da mãe, Cristina
 ?? Fontes: Defensoria Pública de SP, Ministério Público, Polícia Civil e familiares das vítimas ?? Mateus dos Santos Costa, 23
Fontes: Defensoria Pública de SP, Ministério Público, Polícia Civil e familiares das vítimas Mateus dos Santos Costa, 23
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Denys Henrique Q. da Silva, 16
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Marcos Paulo Oliv. dos Santos, 16
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Bruno Gabriel dos Santos, 22
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Dennys Guilherme dos S. Franca, 16
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Luara Victoria de Oliveira, 18
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Gabriel Rogério de Moraes, 20
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Gustavo Cruz Xavier, 14
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Eduardo Silva, 21

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