As bolas fora de Maradona
Entre desafios de ser feminista, a impossibilidade de idolatrar macho em paz
Maradona morreu no Dia Mundial da Eliminação da Violência Contra a Mulher. E é sob esse recorte que o “mais humano dos deuses” se torna desumano. Precisamos encarar a sombra dos ídolos para que os de amanhã possam ser mais humanos.
Maradona morreu. Esse fato se impôs ao mundo inteiro como uma aberração, afinal, lendas não morrem, deuses são eternos, aquela coisa toda. A comoção não poderia ser diferente: o talento extravagante e a importância histórica e política do jogador, dentro e fora dos gramados, são inegáveis.
Em meio àquela pororoca de belíssimas homenagens, logo saltou aos meus olhos outro fato aberrante, se não poético. Maradona morreu no Dia
Mundial da Eliminação da Violência Contra a Mulher. E é justo sob esse recorte que o “mais humano dos deuses” se torna desumano.
Entre os 1.001 desafios de ser mulher e feminista, está a impossibilidade de idolatrar um macho em paz. É pedir muito? Pelo visto, sim.
Decidi fazer um pequeno experimento. Postei nas minhas redes minha singela reverência, seguida de uma foto de Maradona abraçado a duas jovens nuas, que aparentavam ser menores de idade. A imagem, que o envolveu em um escândalo de exploração sexual infantil sem consequências judiciais, foi tirada em Cuba, onde Maradona morava na época.
Em mais uma simbólica coincidência, o jogador morreu no mesmo dia da morte de Fidel Castro, seu amigo e ídolo. A foto não deixa dúvidas: não há nada mais parecido com um machista de direita do que um machista de esquerda.
Compartilhei também um vídeo de 2014 no qual Maradona agride fisicamente sua então namorada, RocíoOliva, enquanto ela filma tudo com o celular. A “suposta” agressão é vista do ponto de vista da vítima, o que torna o vídeo ainda mais perturbador. Maradona estava visivelmente alterado, seu histórico de dependência química não é exatamente uma novidade, tampouco justifica o ocorrido. Até porque não foi um caso isolado. Em 2017, o jogador foi acusado de assédio sexual pela repórter russa Ekaterina Nadolskaya. No ano passado, sua ex-mulher, Claudia Villafañe, o denunciou por violência psicológica.
Postei e saí correndo, na contramão de tantas hipérboles e louvores. Esperei a reação de amigos, especialmente homens. Me surpreendi, pois da parte deles não houve reação alguma, apenas o pacto silencioso da “brodagem”. Perdi um punhado de seguidores e a postagem original foi denunciada por fãs e, consequentemente, retirada do ar.
Em tempos de cancelamento, sobra pouco espaço para a contradição. Precisamos encarar a sombra de nossos ídolos para que os ídolos de amanhã possam ser mais humanos.
| dom. Ricardo Araújo Pereira | seg. Claudia Tajes | ter. Manuela Cantuária | qua. Gregorio Duvivier | qui. Flávia Boggio | sex. Renato Terra | sáb. José Simão