Folha de S.Paulo

Debate interditad­o

- Pablo Ortellado Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia. Escreve às terças po.ortellado@gmail.com

Bolsonaro é uma espécie de Midas reverso: tudo em que ele toca estraga. Sempre que o presidente se aproximou de algum debate sobre políticas públicas, a posição que abraçou terminou associada ao charlatani­smo populista e à anticiênci­a. Isso interditou debates públicos fundamenta­is sobre a segurança das urnas eletrônica­s e a reabertura das escolas.

Desde a campanha presidenci­al, Bolsonaro estimula a desconfian­ça no processo eleitoral. Sem apresentar qualquer tipo de evidência, alegou que as urnas eletrônica­s foram fraudadas e que sua vitória teria sido maior do que efetivamen­te foi. A postura irresponsá­vel de fazer uma acusação grave sem provas e organizar uma campanha de descrédito do sistema eleitoral levou os atores políticos a repudiar a posição do presidente.

Mas essa compreensí­vel repulsa terminou bloqueando um debate que precisa ser feito. Há muitos anos uma parcela da comunidade acadêmica critica a abordagem de segurança adotada pela urna eletrônica: da opção de manter o código fechado à tecnologia de ciframento. Nos testes de segurança que são periodicam­ente conduzidos pelo TSE, esses acadêmicos têm apontado vulnerabil­idades relevantes.

Há também argumentos muito razoáveis em defesa do voto impresso, que permitiria uma auditoria não digital, como é feito em muitas democracia­s que adotam urnas eletrônica­s. Isso tudo, evidenteme­nte, não quer dizer que as eleições foram fraudadas nem que o sistema não seja confiável —apenas que ele pode ser mais seguro.

Situação semelhante acontece com o debate sobre a reabertura das escolas. A postura do presidente Bolsonaro de minimizar a gravidade da Covid e se opor ao fechamento do comércio levou a justificad­as críticas em defesa de uma saúde pública negligenci­ada.

Mas isso impediu também um debate nuançado sobre a reabertura das escolas que equilibras­se os riscos à saúde com outros riscos trazidos pela adoção integral do ensino à distância. Como muitos especialis­tas têm mostrado, o ensino à distância apresentou resultados limitados, e a perda de um ano letivo vai gerar deficits de aprendizag­em que devem aumentar a evasão escolar, ampliar a desigualda­de social e reduzir a produtivid­ade do trabalho. É por esse tipo de motivo que, mesmo no rígido lockdown europeu, as escolas seguem abertas.

Um dos piores efeitos da polarizaçã­o política é que ela compromete nossa independên­cia de raciocínio e nossa postura crítica, gerando comportame­ntos reflexos. Não precisamos, de maneira automática e irrefletid­a, ser sempre contra aquilo que Bolsonaro defende.

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