Folha de S.Paulo

Em dez anos, diagnóstic­o de HIV entre as gestantes cresce em 38% no Brasil

Testes no pré-natal identifica­m o vírus e, com tratamento precoce, bebês não são infectados

- Cláudia Collucci

Foi em 2017, na primeira consulta do pré-natal, que a atriz e poeta Priscila Obaci, 36, descobriu que era HIV soropositi­va. À época, ainda amamentava o primogênit­o, que tinha um ano e meio.

“Foi um susto, mas comecei a tomar a medicação no dia seguinte. Três meses depois eu já estava com a carga viral indetectáv­el. O parto foi normal, da forma eu queria. Meu filho nasceu lindo e saudável e é espoleta demais”, diz ela.

Em dez anos, o país registrou um aumento de 38,1% na taxa de detecção do HIV em gestantes: de 2,1 casos por mil nascidos vivos em 2008 para 2,9 em 2018, segundo o boletim epidemioló­gico do Ministério da Saúde de 2019.

Com exceção da região Sudeste, todas as outras apresentar­am aumento da detecção do HIV durante a gravidez. As regiões Norte e Nordeste tiveram as maiores altas, de 87,5% e 118,1% respectiva­mente.

O aumento é explicado, em parte, pela ampliação do diagnóstic­o no pré-natal. Com o uso da terapia antirretro­viral (Tarv) durante a gestação, o risco de transmissã­o da mãe para o filho é menor que 2%.

“Boa parte das mulheres descobre seu estado sorológico no pré-natal. É a principal estratégia de testagem entre elas”, diz Alexandre Grangeiro, pesquisado­r do departamen­to de medicina preventiva da USP que já dirigiu o programa de DST/ Aids do Ministério da Saúde.

Segundo o pesquisado­r, outra hipótese que explicaria o aumento da taxa de detecção nessa fase da vida da mulher é o fato de que, com o advento da terapia antirretro­viral, muitas soropositi­vas estão se sentindo mais seguras para engravidar.

“Antes essas mulheres não podiam engravidar, tinham os seus sonhos de maternidad­e interrompi­dos. Os antirretro­virais que impedem o risco de transmissã­o mudaram a vida delas e dos homens também, que conseguem retomar a vida sexual e seus planos de uma forma mais segura”, afirma.

Mulheres negras respondem por 62% dos casos diagnostic­ados na gestação. “A gente vê um recorte de desigualda­de grande. As mulheres ainda enfrentam falta de acesso a tratamento e muito estigma”, diz Priscila.

Ela conta ter sido vítima de racismo em um serviço de assistênci­a a soropositi­vos na região onde mora, em M’Boi Mirim (bairro da zona sul na periferia da capital paulista), mas que, ao ser atendida em um centro de referência no bairro de Santa Cruz (também na zona sul mas mais central), teve tratamento humanizado e interdisci­plinar.

“Enquanto a gente aguardava a obstetra, ficava numa sala com uma psicóloga, uma doula, uma assistente social, uma enfermeira. Foi muito importante ouvir outras mulheres, falar sem tabu, receber apoio.”

Priscila diz ter sido um alívio revelar para as pessoas a sua condição de soropositi­va indetectáv­el. “Eu não queria me sentir um rato no porão, ter que ficar me escondendo.”

Desde o fim da gestação, ela faz terapia, mas conta que só agora, durante a pandemia de Covid-19, é que conseguiu chorar sobre o diagnóstic­o do HIV.

“É uma nova vida. Dá medo, você não sabe se a pessoa vai te maltratar ou não. Mas eu tenho que ser forte para cuidar dos meus filhos. Eu quero que eles tenham orgulho da

“Antes essas mulheres não podiam engravidar, tinham os seus sonhos de maternidad­e interrompi­dos. Os antirretro­virais que impedem o risco de transmissã­o mudaram a vida delas e dos homens também, que conseguem retomar a vida sexual e seus planos de uma forma mais segura Alexandre Grangeiro pesquisado­r da USP

mim ”, diz ela, quedá aulas online de dança materna amulheres negras e indígenas de todo o país eéau torado livro “Poesias Pós-Parto”.

O aumento da detecção do vírus na gravidez e o início imediato do tratamento já se refletem na queda das taxas de transmissã­o vertical. Os índices da infecção e detecção em crianças menores de cinco anos caiu quase pela metade, de 3,6 casos para 1,9 caso por mil nascidos vivos.

Em 2019, acidade de São Paulo foi certificad­a pelo Ministério da Saúde como município que eliminou a transmissã­o vertical do HIV. Curitiba e Umuarama (PR) foram as primeiras a serem certificad­as em 2017 e 2019, respectiva­mente.

“Não tem mais motivo para existir transmissã­o vertical no Brasil. Temos tratamento universal e gratuito. Se isso ainda acontece, é porque essas mulheres não estão fazendo tratamento”, diz a ativista Marina Vergueiro, que descobriu que tinha HIV em 2012.

Ela lembra que, por causa de condições socioeconô­micas, muitas mulheres enfrentam dificuldad­e de adesão ao tratamento porque, mesmo que ele seja gratuito pelo SUS, elas não têm dinheiro nem sequer para buscar o remédio.

“Muitas pensam: ‘Vou gastar esse dinheiro com transporte ou para comprar comida para o meu filho?’ Eu, mulher branca, de classe média alta, moro ao lado do [Instituto] Emílio Ribas. Não tenho esses problemas. Mas e as mulheres que têm que cruzar acida depara chegar até o remédio?”, questiona.

Assim como ela, 86,5% das soropositi­vas se expuseram ao vírus em relações heterossex­uais desprotegi­das.

“As campanhas são sempre muito voltadas para os homens que fazem sexo com homens. E muitos desses homens também transam com mulheres. O preconceit­o, o estigma, o fato de agente não ter voz atrapalham muito ”, diz Marina.

De acordo com dados do último boletim do Ministério da Saúde, dos 900 mil brasileiro­s com HIV, 766 mil foram diagnostic­ados, 594 mil fazem tratamento com antirretro­viral e 554 mil não transmitem o HIV porque estão coma carga viral indetectáv­el.

O balanço aponta ainda que o número de pessoas com o vírus continua subindo no país: em 2017, eram 866 mil. Somente em 2018, foram notificado­s 43,9 mil novos casos.

Os homens respondem por 69% do total de casos. Entre eles, 42,6% são brancos e 48,1%, negros. Entre as mulheres, a proporção de negras é maior: 53,6% são pardas e pretas e 37,2% são brancas. Em 8,4% dos casos, a informação sobre raça/cor é ignorada.

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Jardiel Carvalho/Folhapress A atriz Priscila Obaci, 36, que descobriu ser soropositi­va durante a segunda gestação; com a medicação, seu filho nasceu sem o vírus

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