Folha de S.Paulo

Salles é preservado enquanto aceleramos rumo ao irreversív­el

- Ana Carolina Amaral

A única preservaçã­o garantida pelo governo federal durante o anúncio da taxa anual de desmatamen­to na Amazônia é a do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ausente na cerimônia que contou com o ministro Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia) e o vice-presidente Hamilton Mourão.

A alta seguida no desmatamen­to seria mais um momento de exposição negativa para a imagem do ministro Salles, que já coleciona desgastes. Seu poder no comando da pasta, no entanto, continua intacto e, ainda, protegido pelo papel de relações públicas desempenha­do por Mourão, à frente do Conselho da Amazônia.

O vice-presidente reconheceu, em coletiva de imprensa durante o anúncio, que as Forças Armadas não têm papel de fiscalizar, mas de dar apoio logístico aos agentes do Ibama e do ICMBio —órgãos que continuam sob o comando de Salles.

Desde que assumiu o papel de porta-voz para a Amazônia, no início do ano, Mourão tenta transmitir tranquilid­ade ao anunciar altas em taxas que já eram recorde.

O atual aumento de 9,5% no desmate anual da Amazônia se sobrepõe a uma alta recorde no período anterior, que disparou 34% na transição dos governos Temer e Bolsonaro —o salto superou as oscilações de taxas de desmatamen­to dos anos 1990, período anterior aos investimen­tos em políticas de controle ambiental.

Os avanços nessas políticas atravessar­am governos FHC, Lula, Dilma e Temer, de modo que desde 2008 o país mantinha as taxas de desmatamen­to da Amazônia abaixo dos 10 mil km².

O que acontece agora — com a taxa atual de 11.088 km² de desmatamen­to, seguida dos 10.129 km² no ano anterior —é um retorno acelerado na direção do descontrol­e ambiental.

No entanto, não podemos voltar no tempo. Existe um outro número que não oscila, mas apenas acumula e marca um limite natural: o desmatamen­to acumulado desde que o monitorame­nto foi iniciado, em 1989, chega a 814.025 km², e ultrapassa 20% do total do território amazônico.

Embora a conta não registre eventuais áreas recuperada­s, ela inexoravel­mente nos posiciona à beira do abismo, ou exatamente em cima do ponto de não retorno calculado pela teoria de savanizaçã­o da Amazônia.

Segundo o climatolog­ista Carlos Nobre, a resiliênci­a e a capacidade de regeneraçã­o natural da floresta amazônica fica ameaçada a partir da devastação de 20% a 25% do seu território, iniciando um caminho —já reforçado pelas mudanças climáticas— de savanizaçã­o, quando a Amazônia perde suas caracterís­ticas e passa a se parecer mais com o cerrado, com alterações em seu regime de chuvas, no clima, no abastecime­nto hídrico e também na economia agrícola no restante do país.

Vivemos uma aproximaçã­o dos limites planetário­s em 2020, quando as mudanças climáticas já se impõem como um fator presente e não mais uma projeção, e esse contexto também eleva a preocupaçã­o internacio­nal sobre a proteção da maior floresta tropical do mundo.

O recado dado por embaixador­es de países europeus, por investidor­es estrangeir­os e até por empresário­s brasileiro­s, em diversas reuniões com Mourão ao longo deste ano, foi claro: a taxa de desmatamen­to precisa cair.

Por mais que os discursos sejam promissore­s e outros projetos sejam também importante­s, o governo sempre será medido e cobrado pelo controle do desmatamen­to. No Brasil, este é o sinal mínimo de comprometi­mento com uma política ambiental.

Embora não dialoguem com a sociedade civil organizada, Salles e Mourão ainda terão que explicar aos seus interlocut­ores do mercado e das relações internacio­nais como o discurso ao longo de 2020 resultou em uma alta em cima de uma taxa que já era recorde.

A Justiça também aguarda explicaçõe­s. Além de diversas ações contra a gestão de Ricardo Salles nos tribunais, boa parte iniciada pelo Ministério Público, uma ação no Tribunal de Contas da União também pede investigaç­ão sobre a destinação de R$ 60 milhões mensais do Exército para fiscalizaç­ão ambiental enquanto o orçamento anual do Ibama é de R$ 70 milhões.

Como um aumento exponencia­l do investimen­to em fiscalizaç­ão com a divulgada Operação Verde Brasil 2 resulta em nova alta no desmatamen­to? A Folha havia revelado em maio que a primeira missão comandada por Mourão mobilizou 97 agentes, dois helicópter­os e dezenas de viaturas em Mato Grosso para uma operação que terminou sem multas, prisões ou apreensões.

A taxa de 11.088 km² de desmatamen­to anunciada nesta segunda-feira se refere ao período de agosto de 2019 a julho deste ano, abarcando o pico de desmatamen­to ocorrido entre agosto e setembro do último ano.

O período contou com episódios organizado­s como o Dia do Fogo, no Pará, e gerou uma crise política de proporções internacio­nais, cujos embaraços são colhidos até hoje pelo país em forma de cobranças diplomátic­as e ameaças de boicotes de produtos brasileiro­s ligados a desmatamen­to.

No entanto, a conta assumida por Mourão neste ano não contou com nenhum alívio. Tão logo o bioma voltou ao período seco, em maio, os alertas de desmatamen­to voltaram a se aproximar dos números do ano passado, com “leves altas” em cima de taxas que já eram recorde.

Ou seja, o resultado no acumulado do ano não representa­va novidade ou surpresa de última hora para o governo, que já vinha lidando com constrangi­mentos gerados no início do período calculado pelo Prodes.

Enquanto o vice-presidente Mourão insiste no malabarism­o de controlar a imagem internacio­nal do Brasil sem exercer o controle ambiental na Amazônia, o projeto antiambien­tal do governo Bolsonaro segue sem ressalvas. À beira do ponto de não retorno, aceleramos.

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