A diva elétrica
Festival celebra Jocy de Oliveira, a pioneira da música eletrônica no país que teve a sua obra destruída na ditadura e ignorada pelos críticos
Jocy de Oliveira queria fazer um “drama-eletrônico” quando criou “Apague Meu Spotlight”, há quase seis décadas. O espetáculo, de coreografias expressionistas, com cenários compostos por luzes e a voz dosa toress emis tu rand oà música, seria uma espécie de ópera com música eletroacústica. “Na época, no Brasil, não existia nada em matéria de música eletrônica e muito menos um estúdio”, diz a artista.
A solução encontrada por ela foi trabalhara música de sua peça por correspondência, enviando e recebendo fitas de Luciano Beri o, amigo da artista e nome fundamental da música experimental do século 20, direto de seu Estúdio de Fonologia, em Milão. Segundo Fernanda Montenegro, que autou na peça, o “Municipal foi sacudido por essa presença sonora única durante dez dias”.
No começo dos anos 1960, Oliveira já estava à frente da tecnologia de seu próprio país. E esse traço de pioneirismo coma música eletrônica easpeç as multimídi aguiaram a artista em mais de seis décadas de uma obra que é homenageada na edição de dez anos do festival carioca Novas Frequências, dedicado à música experimental.
No evento, realizado de maneira virtual, ela participa de um bate-papo e segmentos de duas óperas multimídia da artista, “La Loba” e “Naked Diva”, serão recriados visualmente pela artista Lilian Zaremba. As músicas, concebidas para serem ouvidas com interpretação cênica, agora ganham vida por meio das imagens.
“É interessante porqueéo inverso no mundo audiovisual —a música vem depois e complementa a imagem que éo elemento principal .”
“La Loba”, de 1995, é inspirada numa lenda do deserto do México, que recria o universo feminino por meio da figura da “loba”. “A mulher que extrapola as barreiras impostas por uma sociedade machista, deixa passar sua sexualidade, sua força selvagem e se liberta.”
Já “Naked Diva”, de 1998, é baseada no romance “O Castelo dos Cárpatos”, de Júlio Verne, em que uma diva é perseguida por um homem, que ouve a mulher todas as noites e rouba sua voz e imagem para as reconstruir em seu castelo.
Hoje com 84 anos, a artista diz que não toca mais piano, instrumento do qual passou cerca de duas décadas como intérprete na Europa enos Estados Unidos. Foi nos anos 1950 e 1960 que ela conheceu grandes compositores da vanguarda europeia, entre eles o russo Igor Stravinsky e o italiano Luciano Berio, além de Lukas Foss, Olivier Messiaen e John Cage, entre outros.
A partir dessas experiências, que ela narra no livro “Diálogos com Cartas”, Oliveira foi voltando sua produção para a composição. “Apague Meu Spotlight” se tornou o primeiro evento de música eletrônica no Brasil, passando pelo Municipal de São Paulo e o do Rio de Janeiro, com o Teatro dos 7, de Montenegro.
A peça foi gravada na rádio MEC, que depois foi ocupada pelos militares e teve todos os seus registros destruídos. Mesmo que o espetáculo tenha representando a primeira experiência com música eletrônica no Brasil, o LP
“Música Eletrônica”, lançado por Jorge Antunes em 1975, foi apontado por inaugurar esse gênero em disco.
O “drama-eletrônico” de Oliveira, contudo, impulsionou a artista na produção multimídia. Nos anos 1970 e 1980, ela fez peças que misturam a música com projeções e outras formas de arte, formato que se desenvolveu com o vídeo e a acompanha até seu trabalho mais recente, “Liquid Voices”, uma “ópera cinemática”.
Mas o piano, ela diz, deve voltara aparecerem sua próxima produção, a adaptação de um romance da poeta Adriana Lisboa inspirado na obra de Oliveira. “Eu tocava bem e era perfeccionista. Hoje não estudo, logo não tenho prazer de tocar mal. Mas o piano já está surgindo na concepção de uma nova peça de músicateatro. Desta vez, não mais ópera. Apalavra ópera está totalmente deteriorada. Tudo é ópera ena verdade nadaé .”
Ao redor do mundo, o disco “Estórias para Voz, Instrumentos Acústicos e Eletrônicos” —em que ela experimenta com vozes e manipulações eletrônicas—, de 1981, ganhou status cult e foi relançado na Europa. Uma edição original do LP pode custar mais de R$ 1.000.
Mesmo com uma trajetória transgressora em vários âmbitos, Oliveira já chegou a afirmar que, se fosse homem, teria feito muito mais do que fez. “É muito simples. O mundo é gerenciado pelo homem. Para nós mulheres, o trabalho é dobrado, e o reconhecimento vem em segundo lugar.”
O universo feminino sempre marcou a obra de Oliveira, tanto a partir da experiência própria quanto pela exploração de mitos de outras culturas. “Não vejo mudança relevante no nosso cenário, haja vista que hoje ainda estamos discutindo o papel da mulher compositora e a história da música continua a ser escrita pelo homem.” Segundo ela, mulheres compositoras tocam em só 2% da programação global de música erudita.
Talvez o maior exemplo seja a falta de reconhecimento à altura de sua própria obra. Oliveira lembra o disco “A Música Século XX de Jocy”, sua estreia, chamado por ela de “segredo mais bem guardado da música popular brasileira”. De 1959, éu ma“sátiraà sociedade da época, ao descaso da selites ed aclasse média em relaçãoàd ordo outro, do invisível, umac rí ticaàdes igualdade s oc ial,à banalização da notícia, ao descaso coma vítima ”.
“O ritmo amétrico, a harmonização beirando o atonalismo e a independência das linhas melódicas e instrumentais eram questões nunca abordadas na música popular brasileira eque subvertiam vários parâmetros convencionais.”
Ela canta sobre suicídio, um assalto —com vozes sussurrando “pega ladrão”— e um incêndio no morro. Relançado em 2018 na Europa, o disco saiu originalmente no mesmo ano de “Chega de Saudade”.
“Houve um forte preconceito na época contra linguagem e autoria de uma mulher de 20 anos. Há dezenas de livros sobre a bossa nova, escritos pelos ilustres críticos, pesquisadores e historiadores que mantiveram os lábios selados. No entanto, seguramente, ele antecedeu a bossa nova e a tropicália. Agora, é descoberto na Europa. E aqui?”