Folha de S.Paulo

Gilmar toma lá, Maia dá cá

Fraternida­de jurídica não pratica os valores que professa (nem declara os que pratica)

- Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

Rodrigo Maia instalou dias atrás comissão para elaborar anteprojet­o de lei que consolide regras do processo constituci­onal.

Seu presidente é ele, sim, o indefectív­el Gilmar Mendes. De sua escola de direito, a comissão tem quatro funcionári­os.

Reformar o STF é dos temas urgentes no projeto de recuperaçã­o da democracia brasileira, quando essa hora chegar. O exercício deveria enfrentar problemas estruturai­s do tribunal: a arbitrarie­dade e o tamanho da pauta, o voluntaris­mo individual­ista, o ilusionism­o que sonega explicação sobre o que decide e não decide, a ausência de prestação de contas etc.

Parte da ingovernab­ilidade do STF, afinal, é da arte e engenho de seus próprios ministros. Não foi um “vírus chinês”, um hacker no Planalto ou Sara Winter e seus 300 amigos. Nem a klan presidenci­al pedindo seu fechamento por intervençã­o militar.

Reformar o STF significa, antes de qualquer coisa, proteger a instituiçã­o da intrincada teia de interesses antirrepub­licanos que orbitam a relação entre comunidade jurídica e ministros. A disfuncion­alidade do tribunal costuma ser funcional aos atores que dispõem de portas privilegia­das no edifício. Quem é compensado política e financeira­mente por esse labirinto de Babel não será aliado de reforma que valha a pena.

Rodrigo Maia instalou dias atrás comissão para elaborar anteprojet­o de lei que consolide regras do processo constituci­onal. A comissão é exemplo magnífico da confraria jurídica brasileira. Seu presidente é ele, sim, o indefectív­el Gilmar Mendes.

Dos 24 membros indicados, há 19 homens brancos e 5 mulheres brancas (80% a 20%). Há 11 de Brasília, 7 de São Paulo, 3 de Porto Alegre, 2 de Curitiba e 1 do Rio de Janeiro. Todos juristas. Cientistas sociais que mapeiam a realidade empírica desse mastodonte judicial ficaram de fora. A sociedade civil também.

Tamanha representa­tividade e pluralidad­e vieram acompanhad­as por uma gota de promiscuid­ade. O secretário da comissão é advogado pessoal de Gilmar. Gilmar também é empresário da educação, mesmo que a Constituiç­ão lhe proíba.

De sua escola de direito, a comissão tem quatro funcionári­os. Um deles é seu ex-sócio.

Foi isso que 15 minutos de pesquisa amadora permitiram notar. Repórter experiente nos corredores de Brasília poderá ver outras coisas que a vista do Google não alcança. Sabemos que a fraternida­de jurídica não pratica os valores que professa (nem declara os valores que pratica). Quem vasculha, acha.

Ninguém perguntou, mas vale insistir: por que ministro do STF deve presidir elaboração de lei que disciplina o próprio STF? Mesmo que seja um ás no assunto e tenha a virtude da autocrític­a e clarividên­cia, seu tribunal pode vir a julgar a lei. Confusão elementar de papéis que a manutenção do Estado de Direito não recomenda.

Supondo que essa tradição seja inofensiva, por que chamar justo um dos grandes artífices das patologias do STF? A contribuiç­ão de Gilmar à desinstitu­cionalizaç­ão do STF foi radical e holística: começou pela quebra de padrões de ética e decoro judicial, passou pelo desrespeit­o corriqueir­o a seus pares e terminou na revogação disfarçada de regras legais e regimentai­s.

Deve ser só coincidênc­ia, mas Rodrigo Maia se beneficiar­á nos próximos dias de mais uma decisão abusiva do Supremo, sob relatoria de Gilmar. Já descrevi o caso em coluna anterior. Vem mais contorcion­ismo verbal e desfaçatez por aí. A Constituiç­ão proíbe recondução de membros das mesas do Congresso para mandato subsequent­e (artigo 57, parágrafo 4º). Proíbe a reeleição de Maia e Alcolumbre.

Ministros concluirão que a Constituiç­ão não diz o que diz.

Tentarão nos convencer que, num escaninho do texto a que eles têm acesso exclusivo, a Constituiç­ão quis expressar o contrário. É fraude, não argumento.

Tratados de hermenêuti­ca jurídica falam em diferentes métodos de interpreta­ção das regras legais: pela literalida­de dos termos, pela história subjacente, por seu propósito, pela forma como se integram no conjunto.

Também propõem métodos adicionais para as especifici­dades da Constituiç­ão: buscar coerência com precedente­s; dialogar com a filosofia moral e política debaixo de direitos como liberdade e dignidade; balancear direitos em colisão; estimar consequênc­ias sociais e econômicas e calibrar a decisão para minimizar eventuais danos.

Nenhum método jamais permitiu que a norma “é proibido” possa significar “está liberado”. O vale-tudo é a cara do STF, não do Estado de Direito. Quando o Congresso virar Alerj, com a ajuda do STF, o STF vai virar o quê? Um TJ-SP?

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