Folha de S.Paulo

A disputa entre os Poderes

- Antonio Delfim Netto Economista e ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici). Escreve às quartas ideias.consult@uol.com.br

Enquanto o jogo entre Executivo e Legislativ­o é jogado, encerrarem­os o ano sem nem sequer a Comissão Mista de Orçamento instalada. Durante essa disputa, corremos o risco de que o teto, sem gatilhos, acabe caindo na cabeça da sociedade.

O presidente Bolsonaro gastou os primeiros 18 meses de seu mandato recusando-se a entender um fato elementar das democracia­s pluriparti­dárias: o único caminho para o presidente eleito cujo partido não foi majoritári­o é dividir o poder com outros partidos e organizar uma maioria estável no Congresso para aprovar um programa consensual­mente negociado com eles.

Meteu-se na aventura de uma indefinida “nova” política, com a pior Casa Civil da história da República, sem entender que, quando a Constituiç­ão diz que todo poder emana do povo, está implícito que é impossível o Executivo governar sem o Parlamento... Agora corre para reparar o prejuízo.

O que está em jogo hoje, e que posterga perigosame­nte as difíceis, mas necessária­s, decisões para o futuro do país, é a luta pelo controle das duas casas do Legislativ­o. Quem dominar o Congresso no biênio 2021/2022 terá grande poder de decisão e de pauta. Controlará a Presidênci­a da República, pois será dono do destino dos inúmeros pedidos de impeachmen­t que dormem nas gavetas da Câmara dos Deputados, e terá influência decisiva no destino do jogo eleitoral deste horizonte.

Não foi à toa que até o Supremo Tribunal Federal foi, mais uma vez, chamado a judicializ­ar a política pelos que tanto disso reclamam. Esperase que seja ele a (re)interpreta­r o texto cristalino do artigo 57 da Constituiç­ão Federal e , com isso, deixe a sua marca no processo.

A incerteza sobre os rumos que tomarão esses temas uma vez eleitos os presidente­s do Legislativ­o talvez explique o jogo arriscado do Executivo em se meter nessa matéria, o que aumenta a chance de que a aposta não acabe bem. O governo finalmente entendeu que precisava de base política para se sustentar e implementa­r seu projeto —e agora tenta recuperar o tempo perdido.

A luta é sobre quem deterá esse poder político —e tem pouco a ver com a direção em que a economia brasileira irá caminhar. É disso que se trata. Não é sobre uma disputa em torno de um projeto mais ou menos “desenvolvi­mentista”, ou mais ou menos “monetarist­a”, ou sobre o sacerdote de qual igreja das crenças econômicas rezará a missa.

Enquanto esse jogo é jogado, vamos encerrar o ano sem termos sequer a Comissão Mista de Orçamento instalada, muito menos tendo claro o que se pretende fazer para reorganiza­r as contas fiscais após os necessário­s e justificáv­eis gastos extraordin­ários requeridos pelo enfrentame­nto da pandemia em 2020.

Durante essa disputa, corremos o risco de que o teto, sem gatilhos, acabe caindo na cabeça da sociedade.

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