Poesia de Bishop, deposta da Flip, combina mal com relatos históricos
Novas edições de Elizabeth Bishop, que foi deposta de homenagem na Flip, mostram como o relato histórico tolhe a sua poesia
Questões de Viagem ****
Autora: Elizabeth Bishop. Trad.: Paulo Henriques Britto. Ed.: Companhia das Letras. R$ 44,90 (176 págs.) O Brasil de Elizabeth Bishop *****
Autora: Elizabeth Bishop. Trad.: Paulo Henriques Britto. Ed.: Companhia das Letras. Lançamento em 2021
Repentinamente o nome de Elizabeth Bishop se tornou trending topic nas redes sociais e nos jornais brasileiros.
Depois de ter sido anunciada como homenageada da Flip deste ano, aparentemente bancada pela condição de mulher e lésbica, descobriram que tinha sido defensora do golpe militar de 1964, o que, sobreposto e amplificado com o repúdio ao atual governo brasileiro de extrema direita, fez com que ela acabasse deposta da homenagem.
Em agosto, o pedido de demissão da curadora da festa literária, Fernanda Diamant, fez com que o evento também deixasse para trás a homenagem à poeta americana, que seria a primeira estrangeira a ocupar esse posto de prestígio em quase 20 anos de Flip.
O festival que começa nesta quinta terá ineditismos diferentes. Será o primeiro a acontecer sem a presença de um curador —Diamant nunca foi substituída, e a equipe da organização da Flip deu seguimento a convites que ela tinha planejado. Entre os 21 convidados confirmados, 14 foram definidos por ela.
Também será a primeira Flip feita em formato virtual, sem o cenário litorâneo de Paraty. Os espectadores poderão acompanhar as 12 mesas, de graça, direto do computador. E não haverá mais homenagem a autor nenhum.
Dos livros de Bishop programados para lançamento naquela Flip frustrada, examinei dois —“O Brasil de Elizabeth Bishop”, com seleção, tradução e notas de Paulo Henriques Britto, que deve ser editado no ano que vem, e “Questões de Viagem”, que saiu em inglês em 1965 e teve o mesmo tradutor. A escolha de Britto é particularmente feliz, por ser poeta com ótimo domínio das formas fixas, fundamentais para Bishop.
“O Brasil de Elizabeth Bishop” é composto de três partes distintas, sendo que a primeira reedita os 11 poemas de “Questões de Viagem” que ali formavam uma seção chamada “Brasil”. A segunda é composta de relatos de viagens da escritora pelo país, entre os quais se destaca o da turnê que a levou a Brasília e depois a uma aldeia do Xingu, na companhia de Aldous Huxley.
A terceira parte, que ocupa metade do volume, está reservada à correspondência, que descreve uma descendente afetiva que vai do início da vida no Rio de Janeiro com a arquiteta Lota de Macedo Soares à progressiva deterioração da relação amorosa que se desenvolveu entre elas.
O movimento melancólico é intercalado principalmente com cartas à médica que tratava de sua depressão e seu alcoolismo e a poetas amigos, como Robert Lowell, Amy Swenson e Marianne Moore.
Nas cartas, Bishop não se estende sobre a carpintaria da sua poesia ou de outros, mas há uma série de comentários rápidos e interessantes.
O que mais me surpreendeu foi a relação que a poeta estabelece entre o pentâmetro iâmbico —um verso composto por cinco sequências de sílabas átonas e tônicas— e a escala do blues, ao ouvir um disco de Robert Johnson.
A observação deixa claro o interesse de Bishop em criar pontes entre manifestações populares, étnicas —que incluem os desfiles das escolas e os sambas de raiz— e as formas eruditas de composição.
As três partes do livro são interessantes por si mesmas, mas a sua junção serve para provar, a contrário, o quanto toda a poesia de Bishop admite mal a companhia de relatos, crônicas e cartas.
São poemas concentrados em remissões internas, de tal modo que as referências históricas menos elucidam que atrapalham a percepção de seu aspecto inovador.
Este não se encontra no conteúdo identificável, mas na delicadeza dos experimentos de refuncionalização das formas fixas no âmbito da poesia moderna, o que implica tanto rigor técnico como a obtenção de um efeito de “sprezzatura”, ou seja, de uma fingida naturalidade e acaso.
Em termos composicionais, o procedimento mais recorrente da poesia de Bishop é o da descrição, tanto da natureza como de seus habitantes, sejam bichos ou homens. Qualquer ação mínima no texto resulta sempre dessa escavação espacial-visual.
Na sua paleta de cores, predominam os tons menores, mas não há o equilíbrio do “locus amoenus” antigo, pois o cenário geográfico-ecológico, ainda que seja ocasionalmente temperado por lampejos de uma grandiosidade primitiva, é assaltado por seres irrequietos e desastrados, sempre desimportantes.
Na matriz espacial, Bishop inclui, calculadamente, apóstrofes irônicas, diálogos leves, fragmentos de vozes, questões aparentemente ingênuas —enfim, situações jocosas que sugerem vagas histórias de fundo. Resulta daí uma graciosidade que confina com a melancolia contida.
Em termos métricos, penso que o ajuste dessas inclusões seja possível graças ao emprego magistral dos versos iâmbicos, que ela certamente estudou nos clássicos ingleses, a começar dos diálogos de William Shakespeare e dos poetas metafísicos do século 17.
Em “Questões de Viagem”, além da parte já referida, há uma segunda nomeada “Outros Lugares” —o que sugere que o nome “Brasil” da seção anterior tem menos a ver com uma entidade política do que com uma configuração espacial de formas de vida, isto é, de um habitat complexo e fechado como sistema.
Disso, é exemplar o poema “Sextina”, que explora a forma poética clássica de seis sextetos, com um terceto de coda, tendo as rimas repetidas em diferentes posições em todas as estrofes, que resultam numa espécie de mergulho elíptico para dentro de si.
É aí que Bishop cose os seus fios de lembranças, aporias, situações de luto e de loucura familiar, sustentadas por um olhar obsessivo e infantil.
Elizabeth Bishop Uma Biografia **** * Autor: Thomas Travisano. Trad.: Luiz A. de Araújo. Ed.: Companhia das Letras. 512 págs. Lançamento em 2021
Em “Elizabeth Bishop: Uma Biografia”, Thomas Travisano escreve que a poeta americana era uma “arqueóloga da sua própria história”.
A afirmação sintetiza a proposta do biógrafo, para quem “muitos dos seus poemas mais esquivos e enigmáticos podem começar a parecer quase transparentes quando se empregam ‘insights’ biográficos de maneira sensível”.
Há dois pontos a se destacar aí. Em primeiro lugar, o fato de que a vida de Bishop teve vários traumas pessoais, mas nenhum acontecimento espetacular que torne sua vida por si só romanesca. O natural interesse despertado pela biografia se deve, antes, à importância de sua obra.
Com o acréscimo, para os leitores brasileiros, de recapitular a vivência que Bishop teve neste país e esclarecer a sua postura diante do golpe militar de 1964 —motivo de polêmica quando a poeta foi escolhida para uma homenagem que acabou não acontecendo na Flip deste ano.
Em segundo lugar, Travisano consegue ampliar a significação da poesia de Bishop, a mostrando como resposta a cicatrizes biográficas, sem reduzir seus traços “esquivos e enigmáticos” ao reflexo de situações existenciais.
Bishop era uma mulher perturbada, às voltas com crises de depressão, com o alcoolismo e com sua homossexualidade, mas Travisano jamais atribui a objetividade elíptica de sua poesia —límpida e descritiva, mas de difícil decifração— a algum ponto cego para si mesma. Ele mostra, ao contrário, uma artista com plena consciência dos seus processos poéticos, expressa em ensaios e cartas.
Dito isso, Travisano é especialmente sensível aos acontecimentos que marcaram a infância de Bishop —como a morte do pai e a posterior internação de sua mãe, depois de um colapso mental.
Bishop viu a mãe pela última vez aos cinco anos, mas ela só morreria quando a poeta completava 21 anos. Nesse meio tempo, viveu com os avós no Canadá e em sua Worcester natal —período no qual sofria “carícias inadequadas” de um tio repulsivo e simpatizante da Ku Klux Klan.
Numa anotação de seus cadernos, ela chegaria a afirmar que “as famílias parecem ‘campos de concentração’ — nos quais as pessoas realmente dão vazão a sua natureza sádica”. E, no conto “Na Aldeia”, Bishop expressa seu sentimento de desolação numa narrativa em que o eco dos gritos da mãe materializa o terror familiar e o temor de seguir o desvario materno.
O fato de a autora ter escrito esse conto em 1953, quando já estava no Brasil, indica a persistência de seus fantasmas.
Bishop veio de navio para cá com a intenção de circunavegar a América do Sul, mas reencontrou a arquiteta Lota de Macedo Soares, que conhecera em Nova York, e resolveu permanecer no Rio de Janeiro, onde conviveu com personagens como o ex-governador Carlos Lacerda —que convidou Lota a realizar o projeto do Aterro do Flamengo— e Vinicius de Moraes, com quem teve um breve caso amoroso.
Duas passagens sintetizam sua percepção do Brasil e, de quebra, da política local. Numa carta ao poeta e amigo Robert Lowell, ela afirma que “a sociedade do Rio de Janeiro é inacreditável”. “Proust nos trópicos com um samba em vez da frasezinha de Vinteuil.”
E, noutro trecho, Travisano afirma que Bishop “estava preocupada tanto com a retórica esquerdista geralmente violenta do presidente Goulart quanto com a retórica anticomunista de Lacerda, para ela muito parecida com a do macarthismo”.
Contudo, mesmo estando farta de política, Bishop declarou que “gostava cada vez mais” daquilo que ela chamava de “o outro lado de baixo” do Brasil, como o humor do povo e sua cultura autóctone. A arqueóloga de si mesma foi, afinal, uma boa antropóloga das contradições brasileiras.