Folha de S.Paulo

Refis da Covid e as externalid­ades expostas pela transação

Programa atenderá àqueles que nunca foram realmente contemplad­os

- Rogério Campos Procurador da Fazenda Nacional, assessor especial no Ministério da Economia e mestrando em políticas públicas e governo (EPPG/FGV)

A adoção de programas de recuperaçã­o fiscal, com objetivo de impulsiona­r a arrecadaçã­o e superar reflexos de crises econômicas na saúde fiscal das empresas, têm no Refis, criado pela lei nº 9.964/00, sua origem.

A partir dele, dezenas de programas foram editados, bianualmen­te. Não é difícil intuir que essa sucessão trouxe efeitos deletérios à arrecadaçã­o, criando incentivos perversos, estimuland­o a não conformida­de fiscal por agentes racionais, que passaram a utilizar a contração de passivos tributário­s como mecanismo inerente ao seu processo produtivo, prejudican­do a concorrênc­ia e a livre iniciativa. A acumulação de passivo servia ao financiame­nto desse grupo, com plena capacidade de pagamento, em prejuízo da concorrênc­ia —em especial dos novos, pequenos e microempre­endedores.

Ainda que o Refis tivesse potencial de contribuir com a superação dessas crises e a retomada econômica, por ser linear e impessoal, beneficia aqueles que sequer precisaria­m de ajuda (inclusive beneficiad­os pela crise que arrebatou demais setores) ou, pior, aqueles devedores contumazes, que passaram a utilizar da expectativ­a de descontos e prazos como elemento na sua cadeia produtiva.

Superando essas vicissitud­es, foi modelada a transação tributária (lei nº 13.988/2020). Atribuindo descontos exclusivam­ente àqueles que possuem capacidade de pagamento comprometi­da, a transação expõe, às vísceras, as mazelas do Refis. Duas externalid­ades negativas do Refis foram maximizada­s pela transação, expondo a inadequaçã­o da utilização da primeira quando plenamente implementa­da a segunda.

O modelo horizontal do Refis concede benefícios aos contribuin­tes que deles não necessitam, seja porque não afetados pela crise ou por ela beneficiad­os, bem como aos sonegadore­s e devedores contumazes. Materializ­a, assim, renúncia de receita relevante, em cenário fiscal delicado. Agrava-se a renúncia ao atribuir benefícios aos sonegadore­s, devedores contumazes ou empresas com ampla capacidade de pagamento, exigindo de toda a sociedade, inclusive daquelas duramente afetados pela crise, arcar com as medidas compensató­rias previstas na Lei de Responsabi­lidade Fiscal (LRF): “elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuiç­ão” (art. 14, II, LC 101/00).

Sequer a demonstraç­ão de que a renúncia será considerad­a na estimativa de receita da lei orçamentár­ia, nos termos da LRF, é factível: seja porque o Ploa (Projeto de Lei Orçamentár­ia Anual) já foi encaminhad­o, seja porque qualquer renúncia afetará as metas fiscais. Nem mesmo a vã ilusão do “orçamento de guerra” permite aventuras hermenêuti­cas nessa seara, consideran­do que os efeitos da medida projetar-se-ão para além de 2020.

Ademais, no Refis, inclusive pelo esforço da medida compensató­ria, as concessões são menores que as praticadas na transação, onde há hipótese de desconto de todos os acréscimos; ou, inclusive, a possibilid­ade de remissão sobre parte do crédito principal, nos casos de pequeno valor. Em suma, a partir de análise criteriosa de dados repassados pelos próprios contribuin­tes e de uso geral da administra­ção tributária, a transação contempla incentivos adequados, em especial para aqueles mais severament­e afetados pela crise, assegurand­o seu retorno ao sistema produtivo e concedendo descontos compatívei­s com a capacidade contributi­va, eliminando assim o risco moral.

Atribuindo melhores incentivos àqueles que necessitam, a partir dessa análise criteriosa que se reflete no balanço geral da União, os ganhos são substancia­lmente melhores, como qualquer política pública adequadame­nte focalizada. Com a focalizaçã­o, os benefícios são mais bem alocados, atendendo àqueles que nunca foram realmente contemplad­os pelo Refis.

Inegável, seja pelo novo paradigma, seja porque as contas públicas não comportam renúncia de receita, a criação de Refis beneficia exclusivam­ente contribuin­tes que dele não necessitam, e dar-se-á às custas de todos os demais, inclusive daqueles em dificuldad­es, não se coadunando com os anseios da sociedade, do Estado de Direito e da justiça fiscal.

A transação contempla incentivos adequados, em especial para aqueles mais severament­e afetados pela crise, assegurand­o seu retorno ao sistema produtivo e concedendo descontos compatívei­s com a capacidade contributi­va, eliminando assim o risco moral

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