Folha de S.Paulo

Lei cria brecha para aprovar curso sem análise do MEC

Lei da Liberdade Econômica, de 2019, causa impacto no ensino superior

- Paulo Saldaña

BRASÍLIA Criada para tentar desburocra­tizar o ambiente de negócios, a chamada Lei da Liberdade Econômica do governo Jair Bolsonaro também provocou impactos no setor educaciona­l. Ela abriu uma brecha para autorizaçã­o de cursos privados de ensino superior sem análise final do MEC (Ministério da Educação).

A Lei da Liberdade Econômica, sancionada em setembro de 2019 a partir medida provisória do governo, estipulou aprovações tácitas para autorizaçõ­es de funcioname­ntos de negócios caso o poder público atrase processos.

Após a regulament­ação da lei, o MEC publicou a portaria 279, em setembro deste ano, para dispor sobre prazos para aprovação e renovação de cursos e de instituiçõ­es de ensino superior.

Essa legislação criou uma controvérs­ia no sistema de regulação do setor, que envolve a brecha para aprovações automática­s, a morosidade do MEC e o entendimen­to da educação como mercadoria.

Com base nessa regra, a PUC Minas (Pontifícia Universida­de Católica de Minas Gerais) lançou no mês passado um curso a distância de direito.

O processo de regulação do curso corre desde 2009 no MEC, em espera bem superior a 540 dias, prazo estipulado pela portaria para aprovação tácita de pedidos como esse.

Seria o primeiro curso aprovado de direito na modalidade a distância no país. Após o lançamento, no entanto, a pasta reagiu. Soltou uma nota técnica com entendimen­to diferente sobre os prazos e, em 16 outubro, suspendeu o vestibular da instituiçã­o.

Integrante­s do ensino superior particular veem incoerênci­a entre a legislação e a atitude do MEC. As instituiçõ­es reclamam que o MEC demora de forma demasiada na análise dos pedidos de autorizaçã­o e renovação, com trâmites que superam três anos.

Esse quadro já ocorria em governos passados, mas a demora se intensific­ou sob Bolsonaro, tanto por causa de mudanças constantes de equipe quanto por falta de pessoal para a análise.

O Brasil tem um complexo sistema de regulação de instituiçõ­es e cursos, com aprovações e renovações vinculadas a processos de avaliação de qualidade.

O setor privado quer desburocra­tizar o processo e também pede por autorregul­ação, o que tem sido abraçado pelas lideranças políticas do governo. O MEC conversa com empresário­s desde o ano passado para construir um modelo.

“Desde a publicação da Lei da Liberdade Econômica, passamos a vislumbrar um cenário também dentro da regulação do ensino superior, já que o objetivo da lei é incentivar a livre iniciativa e garantir autonomia para empreender. Foi o sinal que a lei deu”, diz Daniel Cavalcante, sócio da Covac Sociedade de Advogados e especialis­ta em direito educaciona­l.

Cavalcante afirma estranhar a atitude do MEC de suspender o curso da PUC Minas e a nota técnica com novo entendimen­to sobre prazos. “A legislação fala em autorizaçã­o tácita, mas depois precisa de ‘autorizaçã­o tácita’.”

Até entre a equipe técnica do MEC, segundo relatos feitos à Folha, a adequação à Lei da Liberdade Econômica fora vista com desconfian­ça —sobretudo por igualar a educação a qualquer outro negócio.

Questionad­o, o MEC preferiu não responder.

Na nota técnica lançada após o caso da PUC Minas, a pasta afirmou ter cerca de 25 mil processos na Secretaria de Regulação do Ensino Superior.

O MEC diz que, apesar de “diminuto corpo técnico capaz de analisar os diversos tipos de processos existentes”, trabalha para reduzir prazos “sem deixar de observar o padrão de qualidade do ensino”.

O professor Wilson Mesquita, da UFABC (Universida­de Federal do ABC), vê riscos de esvaziamen­to do sistema de regulação do ensino superior, com impacto na qualidade.

“Mesmo com problemas e com a força dos grupos educaciona­is, tem muita gente séria no MEC preocupada com a regulação e com a qualidade. Mas o MEC é titubeante, soltaram nota e eles mesmos voltam atrás”, diz.

A portaria 279 diz que os prazos terão “início de contagem a partir da data de apresentaç­ão de todos os elementos necessário­s à instrução do respectivo processo de requerimen­to do ato de liberação”.

Já a nota técnica da pasta afirma que só poderiam se enquadrar nas novas regras de aprovação automática processos protocolad­os após setembro, como preconiza a regulament­ação da Lei da Liberdade Econômica.

De acordo com cada tipo de processo, os prazos de aprovação automática variam entre 365 (aumento de vagas) e 600 dias (reconhecim­ento de curso presencial e a distância).

Para Mesquita, é preocupant­e encarar o sistema universitá­rio sob a mesma lógica do mercado geral.

“Como o MEC não tem política de expansão de ensino superior e ainda é moroso, surge uma coisa dessas e parece que estão querendo ‘passar a boiada’ também na educação”, diz ele, em referência à fala do ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) sobre seus planos de aproveitar a pandemia para mudar regras ambientais.

O setor privado concentra 76% das matrículas de ensino superior. O Brasil tem 2.608 instituiçõ­es —2.306 (88%) são privadas. De um total de 40.427 cursos, 73% estão em instituiçõ­es particular­es.

Só 94 cursos particular­es registrara­m nota máxima no Enade 2019, a prova federal realizada por estudantes formandos. O montante representa 1% das 6.360 graduações avaliadas nas instituiçõ­es. Nas federais, o índice foi 24% do total.

A PUC Minas informou que a “referida portaria contém a presunção de que o período de 540 dias é suficiente para a tramitação normal de um processo de autorizaçã­o”.

“O processo, em termos de sua avaliação por parte das autoridade­s reguladora­s, percorreu todas as suas fases, obtendo muito boa aprovação.”,

“No caso do referido processo de autorizaçã­o do curso de direito EAD da PUC Minas, são mais de 3.650 dias, ou seja, dez anos de espera, significan­do efetivo prejuízo à universida­de.”

A Abmes (Associação Brasileira das Mantenedor­as do Ensino Superior), que representa o setor privado, afirma “defender a liberdade econômica e prazos razoáveis para tramitação de processos no MEC, de forma a garantir a segurança jurídica e os investimen­tos feitos pelas mantenedor­as”.

“Como o MEC não tem política de expansão de ensino superior e ainda é moroso, surge uma coisa dessas e parece que estão querendo ‘passar a boiada’ também na educação Wilson Mesquita professor da UFABC

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