Folha de S.Paulo

Antirracis­mo nas empresas

É hora de avançar nas práticas de responsabi­lidade corporativ­a

- Ilona Szabó de Carvalho Empreended­ora cívica, mestre em estudos internacio­nais pela Universida­de de Uppsala (Suécia). É autora de “A Defesa do Espaço Cívico” | dom. Antonio Prata | seg. Tabata Amaral, Thiago Amparo | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó

Em um Dia da Consciênci­a Negra marcado pelo horror das imagens do assassinat­o de João Alberto Silveira Freitas, o teólogo e ativista Ronilso Pacheco postou um desabafo ilustrado com um gráfico em sua conta no Twitter: “Um homem negro espancado até a morte dentro do Carrefour e isso não abalou em absolutame­nte nada o desempenho da empresa no mercado financeiro. Não adianta dizer que vidas negras importam, enquanto o dinheiro que move o mundo segue ignorando a vida negra e tratando como lixo”, escreveu.

Na segunda-feira seguinte, as ações da rede de supermerca­dos caíram 5%. É provável que a empresa se recupere rapidament­e, um privilégio que a família de João Alberto não terá. Situações anteriores similares mostram que práticas não foram transforma­das na profundida­de e com a agilidade que deveriam. A centralida­de do debate sobre racismo e as reações organizada­s da sociedade, no entanto, exigem que companhias deixem de limitar suas ações aos momentos em que casos brutais geram repercussã­o negativa.

Novos selos e métricas de responsabi­lidade socioambie­ntal corporativ­a, como os indicadore­s ESG, precisam contribuir nessa direção. O termo trata da performanc­e das empresas em três áreas: ambiental, social e governança. Ele está associado ao entendimen­to de que companhias não existem exclusivam­ente para gerar dividendos a seus acionistas e são também organismos responsáve­is pelo desenvolvi­mento de toda a sociedade. O próprio Carrefour se destaca em métricas ESG, mas não foi a primeira vez que um episódio de violência contra uma pessoa negra ocorre dentro de uma unidade da rede.

O valor total aplicado em ativos financeiro­s que seguem algum tipo de critério ESG dobrou nos últimos dois anos, atingindo US$ 40,5 trilhões em 2020. Isso equivale a quase 30 vezes o PIB do Brasil em 2019. Por trás do número expressivo, no entanto, é preciso notar os casos em que as empresas alegam adotar “algum tipo de critério ESG”. A adoção seletiva ou superficia­l desses critérios pode se materializ­ar em tragédias como a que envolveu João Alberto.

Há muitas formas de se tentar transferir responsabi­lidade em cadeias de produção e logística, e a terceiriza­ção é uma das mais relevantes. No caso do Carrefour, os seguranças envolvidos no assassinat­o eram do Grupo Vector, contratado pela rede. Os perigos da expansão descontrol­ada da segurança privada no Brasil são conhecidos. Há anos, pesquisado­res e organizaçõ­es da sociedade civil alertam sobre eles. Falta de fiscalizaç­ão e de previsão legal para a Polícia Federal penalizar as más empresas, uso abusivo da força e envolvimen­to irregular de policiais, entre muitos outros.

O desafio é sistêmico, mas há caminhos. Como escreveu a advogada de direitos humanos Sheila de Carvalho, as empresas precisam entender que responsabi­lidade social antirracis­ta é fazer mais que o mínimo de diversific­ar o perfil dos seus funcionári­os. Reparar, inclusive financeira­mente, famílias, se responsabi­lizar por situações envolvendo seguranças terceiriza­dos, rever a contrataçã­o desse tipo de serviço e realizar treinament­os e ações de prevenção são algumas das possibilid­ades apontadas.

O poder público também precisa se responsabi­lizar por legislação e fiscalizaç­ão apropriada­s, e medidas jurídicas para garantir que essas práticas sejam adotadas. Tanto as empresas quanto o Estado devem estar atentos ao que dizem, em especial organizaçõ­es e coletivos do movimento negro brasileiro.

No discurso, há cada vez menos espaço para se negar a importânci­a da responsabi­lidade corporativ­a no enfrentame­nto ao racismo. É hora de avançar nas práticas.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil