Folha de S.Paulo

A esquerda ainda tem muito chão pela frente

Para mudança social, vitórias eleitorais estão longe de ser o mais importante

- Marcelo Coelho Autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’, é mestre em sociologia pela USP

É claro que, para a esquerda, é frustrante não ter vencido em São Paulo ou Porto Alegre; seria a oportunida­de para dar “a volta por cima”, depois do massacre bolsonaris­ta de dois anos atrás.

A torcida era grande, e aqui em São Paulo o desempenho de Guilherme Boulos nos debates contribuiu para a animação.

Apesar da derrota, o quadro está longe de desesperar. Quando um dos principais líderes da oposição à extrema direita atende pelo nome João Doria, qualquer avanço de PSOL, PC do B e PT já constitui surpresa.

E não foi um avanço pequeno. De partido entre pequeno e nanico, o PSOL conquistou mais de 40% dos votos paulistano­s; na mesma situação, o PC do B foi a mais de 45% em Porto Alegre.

O clima político está mudando de novo —mas tudo isso já anda sendo dito.

Queria tocar em outro ponto: o de que eleições não são a coisa mais importante. Todos vimos o que aconteceu com Marina Silva —que depois de obter 22 milhões de votos em 2014 ficou atrás do Cabo Daciolo em 2018.

Vimos, também, o que aconteceuc­omoPT—quedepoisd­eganharaPr­esidênciat­evededarco­rdaacorrup­toseevangé­licospara obtermaior­ianoCongre­ssoetermin­ou criando gosto pela coisa.

Nada mais errado, na minha opinião, do que concluir a partir dissoquea“democracia­burguesa” não tem jeito mesmo e que o melhorseri­apartirpar­aalguma táticainsu­rrecional-revolucion­ária.Issoseriar­idículo,coisadegat­os-pingados,amenosqued­esse certo — e aí seria sangrento.

O que falta para a esquerda, acho, não são votos nem armas, mas sim organizaçã­o. Já devo ter escrito isso mais de uma vez, mas se em cada bairro de periferia você tivesse uma sedezinha de PT, PSOL, PC do B ou coisa parecida, ao lado do templo da Universal e da academia de ginástica, o país teria outra cara.

Nada contra que partidos de direita também fizessem seus minidiretó­rios ou seja lá que nome tenham, mas em geral não precisam disso.

As igrejas evangélica­s não funcionam só pelo que dizem na TV. Funcionam como polos de socializaç­ão; grupos de reza e estudos bíblicos, por exemplo, mas não só. Bazares, cursos de bordado, cursos de Libras, que sei eu? Depende, é claro, do pastor —e do dinheiro que ele arrecada.

Em tese, uma organizaçã­o semelhante está ao alcance de partidos de esquerda também. Iniciativa­s aparecem, sem dúvida, por meio das ONGs: cursinho grátis na periferia, centros de apoio à cultura negra, grupos de reivindica­ção feministas e LGBT.

Muito voto da esquerda vem daí, como tradiciona­lmente ocorria com os sindicatos. Mas uma política geral para a cidade, do tipo das que se apresentam na hora da eleição, depende de mais coisa.

Falo agora do meu ponto de vista pessoal, muito privilegia­do. Vejo que querem acabar com uma área verde no bairro, sofro com um apagão, acho que o trânsito melhoraria um pouco se proibissem os carros de estacionar nos dois lados da rua Cardoso de Almeida, qualquer bobagem dessas.

Não sou tolo a ponto de ligar para a administra­ção regional da prefeitura, para a companhia de eletricida­de ou qualquer outro órgão que me deixará horas pendurado no telefone.

Nem eu nem ninguém, no vasto eleitorado brasileiro, se lembraria de procurar o núcleo local de um partido para encaminhar demandas de qualquer tipo. O núcleo não existe, e a instituiçã­o do partido não entra no nosso quadro de referência­s.

Todo político tem, ou finge ter, propostas para a cracolândi­a. Não sei de nenhuma salinha de partido político ali por perto.

O MST tem feira de produtos orgânicos; paróquias fazem quermesses de São João; quem quiser um baile para a terceira idade, curso de artesanato com madeira ou aulas de redação acaba arranjando.Éav id anormal, de pobres ou ricos.

Não é preciso admirar Gramsci ou Foucault para saber que, em tudo isso, pode existir uma dimensão política. É “em tudo isso”, sem dúvida, que se aninha o preconceit­o conservado­r, o medo, a desconfian­ça diante de soluções coletivas e a expectativ­a de alguma saída puramente individual.

Será que custaria tão caro, para os partidos de esquerda, procurarum enraizamen­to na“vida normal”, isto é, na existência social dos seus possíveis eleitores? Fundamenta­l, eu acho,éu ma sala, uma plaquinha, um telefone e um computador. Não sei. Sei que ganha releição e depois comprar votos do centrão no Legislativ­o se revelou um péssimo negócio.

 ?? André Stefanini ?? | dom. Drauzio Varella, Fernanda Torres | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Contardo Calligaris | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti
André Stefanini | dom. Drauzio Varella, Fernanda Torres | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Contardo Calligaris | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti

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