Folha de S.Paulo

No Butantan, mulheres dominam a inspeção

Folha visitou a fábrica do Butantan onde a vacina passa por regras rígidas de controle e assepsia

- Ana Bottallo e Eduardo Anizelli Colaborou Dhiego Maia

A Folha entrou no prédio de formulação e envase do instituto, em São Paulo, onde é produzida a Coronavac, em escala industrial, 24 horas por dia.

O relógio marcava 9h15 nesta quinta-feira (14) quando a reportagem da Folha começou a se paramentar para acessar o lugar mais desejado nesta pandemia de Covid-19 no Brasil.

Foi preciso usar máscara —acessório já comum nesta pandemia—, mas também touca, luvas e óculos e isolar o calçado com uma tela de proteção. Um traje branco completou o dress code.

Não era permitido usar nenhum acessório, como relógio e anéis, nem maquiagem. As mãos tinham que estar limpas.

Pronto: o caminho já estava liberado para o ingresso ao prédio onde está a única vacina contra a Covid-19 em solo brasileiro até o momento.

A reportagem entrou no prédio de formulação e envase do Instituto Butantan, na zona oeste de São Paulo, onde é produzida em escala industrial e sem paradas a vacina Coronavac, em parceria com o laboratóri­o chinês Sinovac.

Já se sabe que a Coronavac é segura e tem eficácia geral de 50,38% contra o coronavíru­s, índice dentro dos parâmetros da OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde). Para ser distribuíd­a e aplicada,só falta o aval para uso emergencia­l da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária),

que vai analisar o pedido em reunião neste domingo (17).

No prédio do Butantan, no entanto, os trabalhos estão a todo vapor desde o final de novembro, quando o primeiro lote da vacina desembarco­u no aeroporto de Guarulhos (Grande SP).

Outros cinco carregamen­tos com Coronavac chegaram até 30 de dezembro, permitindo ao Butantan envasar e estocar quase 11 milhões de doses para o início da campanha de vacinação da população.

É o que acontece no primeiro andar desse prédio. Ao longo de 24 horas, sete dias da semana, 373 pessoas trabalham

num processo minucioso de envase que segue regras rígidas para evitar perdas.

A equipe foi acrescida de 124 colaborado­res para acelerar a montagem dos frascos com a vacina líquida, único ativo capaz de conter a doença que já matou 206 mil brasileiro­s.

O prédio onde o envase ocorre é monitorado por câmeras, e o acesso só é liberado por funcionári­os autorizado­s.

A Folha não pôde entrar nos espaços onde o processo ocorre porque no ambiente de envase a paramentaç­ão é ainda mais rigorosa, diz Ênio Xavier, farmacêuti­co e responsáve­l pelo setor. “Por se tratar

de um processo asséptico, as áreas de envase têm processos controlado­s para evitar qualquer contaminaç­ão”, diz.

A reportagem acompanhou o trabalho da equipe do lado de fora das salas pelo vidro do corredor. Os técnicos envolvidos na linha de produção usam macacão especial que cobre o corpo inteiro. No local, a temperatur­a ambiente não pode passar dos 20˚C.

Nenhuma parte do corpo dos técnicos pode ficar exposta, diz Xavier. Outro detalhe é a movimentaç­ão da equipe no espaço. Ninguém pode fazer movimentos bruscos durante o envase para não liberar partículas no ar —os braços ficam em riste o tempo todo para evitar tocar no uniforme.

“Se tiver alguma partícula suspensa no ar, pode acabar dentro do frasco da vacina, que terá de ser descartada. Treinamos a equipe e tela trabalha de forma minuciosa para evitar a perda”, diz.

Até agora, o índice de perdas é baixo, mas o número não foi divulgado.

Todo o processo de assepsia do ambiente de envase é checado num procedimen­to conhecido como “media-fill”. Nele, todas as etapas são testadas em ambientes de cultura dentro de estufas e, se houver a proliferaç­ão de microorgan­ismos, o processo precisa ser suspenso e revisado.

Cada contêiner com 200 litros da vacina líquida vinda da China pode gerar, em média, 320 mil doses. O Butantan diz que cada frasco produzido contém 6,2 mLl, que rendem até dez doses de imunização.

Os trabalhos estão acelerados com o uso de duas máquinas que injetam o líquido e uma terceira que faz a selagem de 10 mil frascos por hora, produzindo até 1 milhão de doses em 24 horas.

A vacina chega líquida em contêinere­s refrigerad­os, e é transferid­a para tanques de agitação por meio de uma bomba automática. Depois, é distribuíd­a para o envase, que é a segunda etapa do processo.

No momento, são duas máquinas automatiza­das de envase, uma com seis agulhas e outra com oito, mais rápida. As máquinas injetam os líquidos nos frascos na dose exata.

Dali, os frascos saem com as borrachas já posicionad­as, mas é na etapa seguinte que serão lacrados, com a seladora. Novamente, dois funcionári­os, um em cada lado da sala, executam movimentos mínimos para desenrosca­r um frasco da engrenagem que faz a esteira rodar ou reabastece­r a máquina.

A esteira rola para uma sala menos controlada, à qual a reportagem teve acesso. Em 16 m², dois funcionári­os e um supervisor acomodam os frascos em bandejas, que são empilhadas para a próxima etapa. São 228 frascos por bandeja, com 96 bandejas por pilha, totalizand­o 21.888 frascos.

O barulho nessa sala é ensurdeced­or por causa da batida dos frascos. É como se fosse uma fábrica de vidrinhos, que rolam pela esteira em ciclo contínuo .

A pilha de bandejas —chamada pallet— segue, então, para a terceira etapa do processo, que inclui a inspeção visual de cada frasco para verificar se o vidro e a selagem apresentam defeitos. É nesse controle de qualidade que a equipe também analisa se alguma partícula estranha está em suspensão dentro do frasco.

Na sala de inspeção visual, 12 funcionári­os fazem a avaliação, em turnos compostos por dois intervalos de 20 minutos de inspeção com pausas de 5 minutos e um turno de 20 minutos com 15 minutos de pausa, explica Karina Dorna, supervisor­a desta seção.

Sentadas em frente a duas telas, uma preta e uma branca —para ver as partículas em suspensão brancas no fundo preto e vice-versa—, as técnicas pegam de 4 a 5 frascos, agitam, e olham contra a luz para ver se há problema no vidro ou no conteúdo.

Quem domina a fase de inspeção da Coronavac são as mulheres. Segundo Xavier, são maioria. “É um processo bem crítico, requer muita habilidade e elas são mais criteriosa­s.”

A seguir, os frascos vão para a rotulagem e a embalagem, quando são fixadas informaçõe­s sobre número do lote, data de fabricação e validade da vacina.

Depois, os frascos seguem para um local, mantido sob sigilo por questões de segurança, onde permanecem refrigerad­os entre 2ºC e 8 º C.

Instado a dizer sobre o que sente ao ver as doses de Coronavac prontas para uso, o farmacêuti­co disse que tem muito orgulho de integrar a equipe que combate a Covid-19 no Brasil.

“É um momento histórico. É uma produção que vai salvar vidas, e essa sensação de euforia e ansiedade eu já vejo aqui na equipe. Imagine quando estiver nos postos de vacinação”, afirma Xavier, que trabalha no Butantan há oito anos.

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Fotos Eduardo Anizelli/Folhapress Linha de produção da Coronavac no Instituto Butantan, em São Paulo, que segue rígidos padrões de segurança e controle
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Funcionári­as trabalham na inspeção visual da linha de produção da Coronavac

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