Folha de S.Paulo

‘Você não vai falar sobre isso?’

As pessoas costumam tratar pessoas negras como comentaris­tas de racismo

- Djamila Ribeiro

As pessoas costumam tratar pessoas negras como comentaris­tas oficiais de racismo. Claro que é importante denunciar, mas é mais fácil a elas se apoiar em uma relação de demanda daquela pessoa negra que você pensa estar à sua disposição.

Em 2018, a saudosa mãe Stella de Oxóssi procurou responder à pergunta “o que você faria para mudar o mundo?”. A sábia ialorixá respondeu: “De maneira leve, digo: ‘Se não fui eu que criei o mundo, como posso mudá-lo?’”.

“De maneira filosófica, respondo: ‘A impermanên­cia é a caracterís­tica principal do planeta Terra. Independen­temente de nossa vontade, ele mudará sempre’.”

“De maneira realista, digo: ‘Ninguém, até hoje, conseguiu mudar o todo, apenas aparte; quero dizer que consigo, com muito esforço, mudar apenas amim mesma e, assim, tento atingir o mundo’.”

“De maneira sacerdotal, que éa quem ecabe,resp ondoa essa pergunta dizendo :‘ Eu procuro ser digna, para nunca perdera capacidade de me indignar comas mazelas humanas ’.”

“Dou, então, a seguinte respos tapara a pergunta‘ oque você faria

para mudar o mundo?’: Viveria, e busco viver, minha vida como um rio que flui, esforçando­me bastante para não ser obstáculo no fluir da vida do outro.”

Inspirada nas palavras dela, que foi uma das maiores mães de santo de todos os tempos, gostaria neste mês de janeiro, único em que tenho gozado de minhas férias, de falar sobre uma prática recorrente que penso ser muito problemáti­ca: pessoas que delegam a mudança que devem fazer.

Em geral é assim: primeiro, repercute nas redes sociais alguma manifestaç­ão da estrutura do racismo. Isso pode ser uma ofensa racial direta, um terrível crime racial, um caso absurdo de discrimina­ção no trabalho, enfim, manifestaç­ões que o Brasil tem diariament­e.

Muitas vezes, eu não estou envolvida na repercussã­o, nem sequer sei o que aconteceu. Pode

ser por variados motivos: posso estar trabalhand­o em meu livro, fazendo meu cabelo, ou então deitada no sofá curtindo ou não fazendo nada. Trabalho 12 horas por dia e agora estou em férias. Ou ainda, posso estar ciente, mas não inspirada a falar a respeito. Seja como for, não comento.

Aí, não demora muito, surgem seres humanos me mandando mensagem: “Você não vai falar sobre isso?!”, copiando uma imagem ou link do ocorrido. Muitas vezes me procuram no imperativo, “escreva sobre isso na sua coluna”.

Ora, existe algo mais desrespeit­oso do que falar com alguém no imperativo? Eu venho de uma educação em que meus pais me ensinaram a pedir licença antes de entrar na casa de alguém, a não ligar após as 21h se não há intimidade, então ainda me espanta a facilidade com que certas pessoas falem sem respeito. Eu fico pensando: pessoas que cobram estão fazendo o quê? Estão fazendo projetos coletivos, apoiando suas comunidade­s?

Post em rede social tão somente não vale. A pessoa faz o post, muitas vezes para satisfazer o ego, ganha likes e logo em seguida segue a vida. As pessoas costumam tratar pessoas negras como comentaris­tas oficiais de racismo, quando na verdade somos humanos e, portanto, plurais em nossas existência­s.

Tratam-nos como se fôssemos poder público. Claro que é importante denunciar o racismo, o machismo, a desigualda­de social, a homotransf­obia, sobretudo em tempos de um governo compromiss­ado com políticas de precarizaç­ão e morte.

No meu caso em particular, já faço isso e, para além da denúncia, trabalho por um projeto coletivo de conscienti­zação. Tenho livros publicados, centenas de artigos, fiz centenas de palestras, doei mais de 15 mil livros para projetos sociais e escolas públicas, publico outras pessoas, mas elas não querem ter trabalho de ler e estudar.

Como cantou Tina Turner, não precisamos de outro herói. Quem tiver disposição para falar e denunciar que faça, e quem quiser escrever sobre música, assistir a uma partida de tênis, ficar horas conversand­o com amigas por celular dando risadas, namorar sem se preocupar que goze. Mas fica num lugar de “se não postar sobre isso, não serei militante o suficiente”, mesmo que seja um meme que nada agregue, mas que seja o bastante para me sentir no ISO 9001 de militância e passar a cobrar os outros a falarem do assunto também.

Isso quando não ficam num lugar cômodo de não pesquisar os infindávei­s trabalhos sérios sobre os assuntos debatidos, apoiar as organizaçõ­es, pois é mais fácil se apoiar numa relação de demanda daquela pessoa negra que você pensa estar à sua disposição, numa releitura colonial do senhor e a escrava, em que há a ordem “vá, fale sobre ou vai me desapontar!”.

Ao substituir a demanda pelo outro, construir o que está a seu alcance, chove em seu rio para que encontre seu caminho ao mar. Então, quando me perguntam se eu não vou falar sobre isso, penso “não, não vou”. E tudo bem.

| dom. Fernanda Torres, Drauzio Varella | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Contardo Calligaris | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti

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Linoca Souza

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