Folha de S.Paulo

Miopia à francesa

Macron fala bobagem sobre a soja brasileira, mas cerrado merece tanta atenção quanto a Amazônia

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Sobre postagem de Macron contra soja brasileira.

Qualquer pessoa com conhecimen­to sobre commoditie­s entende que o presidente da França, Emmanuel Macron, falava para seu público interno ao desfechar o ataque à soja brasileira, na terça-feira (12), numa rede social. Não é só no Brasil que políticos oportunist­as alvejam desafetos estrangeir­os para recauchuta­r sua imagem doméstica.

A ideia de que agricultor­es franceses possam plantar quantidade suficiente do grão para tornar aquele país autossufic­iente é risível, para não falar da clara impossibil­idade de competir em preços com o produto brasileiro.

A desculpa de que toda a soja exportada seja oriunda de desmatamen­to na Amazônia tampouco se sustenta, mas o vínculo entre esse cultivo e a perda de vegetação natural merece exame mais cauteloso.

O primeiro ponto a considerar é a existência de uma moratória para a comerciali­zação de soja provenient­e de áreas amazônicas devastadas recentemen­te.

Apesar dela, artigo de pesquisado­res do Brasil, da Alemanha e dos EUA publicado há seis meses no periódico Science estimou que 500 mil toneladas do grão exportado daqui para a União Europeia podem estar contaminad­as por desmatamen­to ilegal na Amazônia.

Isso correspond­e a menos de 4% do total embarcado do Brasil para a UE, cerca de 14 milhões de toneladas. Além disso, só uma parte terá sido colhida em áreas desmatadas ilegalment­e, pois mesmo propriedad­es com passivo ambiental possuem áreas de cultivo autorizado, e apenas uma pequena parcela terá seguido para a França.

De um ponto de vista quantitati­vo, o ataque de Macron parece insustentá­vel. Dito isso, há que assinalar o fato de a maior parte da soja brasileira exportada para a Europa ser oriunda não da Amazônia, mas do bioma cerrado, de onde teria saído outro 1,4 milhão de toneladas sob suspeita.

A atenção de Macron e do público se volta para a floresta amazônica, por sua biodiversi­dade e pela aceleração das derrubadas no governo de Jair Bolsonaro, que não faz questão de disfarçar sua agenda antiambien­tal. Entretanto cumpre apontar que o cerrado —não menos importante do ponto de vista ecológico— sofre pressão maior.

A savana que cobre o CentroOest­e perdeu 7.340 km² no último ano, ante 11.080 km² na Amazônia, cuja área é mais de 100% maior. A expansão da soja, assim como a da pecuária, do milho e do algodão, está na origem dessa devastação mais pujante e menos valorizada.

O avanço desordenad­o da fronteira agrícola pode bem tornar realidade, em alguns anos, a acusação lançada hoje sem conhecimen­to de causa por Emmanuel Macron.

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