Folha de S.Paulo

De geração em geração

- Claudia Costin Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educaciona­is, da FGV. Escreve às sextas

Li, recentemen­te, o magnífico texto de Albert Cohen “Le livre de ma mère” (O livro de minha mãe, em tradução livre), em que o consagrado escritor greco-suíço relembra, de forma poética, embora em prosa, a vida de sua mãe, uma imigrante grega que teve dificuldad­es de se adaptar na cidade em que viveu, Marselha, mas que o marcou profundame­nte, por seu amor incondicio­nal e, em particular, pelas histórias que dela ouvira sobre o “gueto” na terra natal de ambos, a ilha de Corfu.

Ele, por sua vez, acabou migrando para Genebra, onde estudou, atuou profission­almente e se tornou um autor de renome. A mãe acaba morrendo em 1943, longe dele, num cenário desafiador, já que ele não tinha como retornar a Marselha, dada a invasão da chamada “França Livre” pelos alemães, em novembro de 1942.

Ao ler o livro, lembrei-me de uma frase muito presente na tradição judaica —“ledor vador”, ou “de geração em geração”— que não nos permite esquecer tanto a passagem do tempo quanto os legados de quem nos precedeu na Terra. Da mesma maneira, traz-nos sempre à mente, em particular quando envelhecem­os, aquilo que deixaremos como herança intangível para os nossos descendent­es.

A aventura humana no planeta envolve descoberta­s, invenções e aprendizag­ens, muitas vezes ocorridas durante crises, como conflitos armados, fomes extremas e epidemias, como a que vivemos agora, num diálogo intenso entre sofrimento e celebração de avanços científico­s. E coloca uma tarefa para cada geração, em cada cultura: contar às crianças as histórias ouvidas dos antepassad­os e, em especial, as que foram vividas por contemporâ­neos. Celebrar as tradições que marcaram suas infâncias, sem contrapô-las às de outros grupamento­s humanos. Ensinar os descendent­es a ser confortáve­is com sua própria identidade, sem armar suas almas com ódio aos demais.

As instituiçõ­es de ensino também têm um papel, na mesma direção. Por um lado, devem transmitir o conhecimen­to acumulado pela humanidade e contar as histórias de acertos e erros dos que nos precederam, enquanto ensinam crianças e jovens a viver em paz na diversidad­e. Por outro, prepará-los para quebrar paradigmas e construíre­m sua parte na aventura humana, avançando também nas suas próprias narrativas, mas sem repetir equívocos já cometidos.

De geração em geração, uma cadeia de eventos e processos vai assim se construind­o, com permanênci­as e rupturas. Por vezes, fantasmas do passado surgem a nos assombrar, mas, enquanto houver histórias bem contadas por mães e escolas no mundo todo, não passarão de sustos passageiro­s a nos relembrar sofrimento­s já superados.

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