Folha de S.Paulo

Um projeto de vida: do aplicativo de comida ao magistério

Sonho de Edilene se constrói entre a mochila e a bicicleta e o curso a distância

- Dagmar Zibas Doutora em educação pela USP e pesquisado­ra aposentada da Fundação Carlos Chagas

Longevas senhorinha­s de hoje, que foram adolescent­es de classe média nos anos 1940 e 1950, sabem que o sonho daquelas moçoilas era o diploma de professora normalista para exercerem, em escolas públicas, a então valorizada profissão, uma das poucas disponívei­s às filhas de “boas” famílias. Entretanto, as netas das atuais oitentonas estão focadas em outras carreiras, de melhor remuneraçã­o e, portanto, de maior status.

É nesse cenário que o sonho de Edilene se constrói. Conheci essa mulher extraordin­ária numa tarde de domingo, no pátio de um restaurant­e em São Paulo. Estava concentrad­a na tela do celular, tendo ao lado a mochila do iFood e a bicicleta. Receptiva à minha curiosidad­e, foi logo contando como concilia dez horas diárias de trabalho, em que pedala para entregar comida, com os encargos de mãe e com um curso online de pedagogia.

Não, não se sente explorada por lhe faltar a “carteira assinada”. Importante, diz ela, é que o ganho atual é bem maior do que seu salário anterior. Flexibilid­ade de horário e não ter ninguém “enchendo a paciência” também são vantagens. Ou seja, o “aqui e agora” é premente, e a maior renda empalidece a inseguranç­a e a dureza do trabalho precarizad­o. No entanto, há um projeto de futuro: terminar pedagogia e fazer complement­ação em educação especial. Edilene expressa bem o porquê desse objetivo: “Fui cuidadora em escola, e vi professora­s destratand­o crianças (com necessidad­es) especiais. Peguei amor, e vou ensinar com muito amor”. O curso, de preço acessível, oferece biblioteca virtual, mas não é necessário recorrer a livros porque “os vídeos são suficiente­s para passar nas provas”.

O malabarism­o diário exige estratégia­s complicada­s para manter o equilíbrio. Preparar o almoço e o jantar dos dois filhos, que ficarão sós em casa, é a primeira tarefa de todos os dias. A bicicleta é alugada na região da avenida Paulista por R$ 300 mensais, e as duas horas de transporte público são dedicadas às aulas online.

O salário da futura professora possivelme­nte será menor do que a renda da entregador­a, que é, em média, de R$ 800 por semana. Então, por que a opção pelo curso? O senso comum diria que o menor ganho tem, em contrapart­ida, o maior status social e a estabilida­de do magistério. Mas Edilene é enfática: quer ser professora apenas por amor às crianças maltratada­s.

Tal afirmação remeteu-me a pesquisas na área da educação, que, nos anos 1980 e 1990, registrava­m frequentes declaraçõe­s de professora­s com o mesmo teor: para a realização da aprendizag­em, sua relação com os alunos deveria ser de muito carinho.

Os dados desses estudos geraram intensa polêmica. Para alguns especialis­tas, os cursos de magistério não estavam preparando as estudantes para o exercício competente da profissão, daí o apelo a um sentimenta­lismo inútil. Outros estudiosos afirmavam que a caracterís­tica feminina, culturalme­nte construída, de cuidado com as crianças, complement­aria com sucesso a competênci­a técnica exigida.

Participan­te daqueles debates e me deparando agora com a história da valente Edilene, registro, com desalento, que a competênci­a do magistério jamais será garantida por aligeirado­s cursos a distância, procurados por mulheres inteligent­es, fortes e afetuosas como minha interlocut­ora, mas que não dispõem de tempo e, principalm­ente, de apoio acadêmico efetivo para a formação complexa que a carreira exige.

Tal apoio deveria incluir ampla inserção cultural para compensar as lacunas que, em vista da origem de classe, provavelme­nte marcam a sofrida trajetória dessas estudantes.

Em Edilene, justapõem-se duas das iniquidade­s da atual cena brasileira: de um lado, a naturaliza­ção do trabalho precário, excluído de garantias trabalhist­as básicas; de outro, a inépcia a que pode estar sujeita a formação para o magistério, profissão aviltada em sua base salarial —e, portanto, em progressiv­a desvaloriz­ação social.

Em Edilene, justapõem-se duas das iniquidade­s da atual cena brasileira: de um lado, a naturaliza­ção do trabalho precário, excluído de garantias trabalhist­as básicas; de outro, a inépcia a que pode estar sujeita a formação para o magistério, profissão aviltada em sua base salarial —e, portanto, em progressiv­a desvaloriz­ação social

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