Folha de S.Paulo

Lavando as mãos

Não há ciência que dê jeito sem o esforço coletivo de usar máscaras e tomar vacina

- Angela Alonso Professora de sociologia da USP e pesquisado­ra do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to

A história da ciência é historia de céticos. Desde os cueiros, a ciência moderna apanha dos descrentes. O temor dos efeitos indesejado­s das boas intenções científica­s comparece desde a literatura oitocentis­ta, vide o doutor Victor Frankenste­in, até o cinema catástrofe contemporâ­neo. Hollywood é pródiga na desova de gênios desalmados manipuland­o frascos diabólicos. É desconfian­ça velha, que alimentou a moda antivacina dos naturebas de esquerda, antes de florescer à direita, com os negacionis­tas nossos de cada dia.

Esse ceticismo atrasou o combate a doenças controláve­is pelo gesto simples de lavar as mãos, conta Céline, um insuspeito para direitista­s. Sua tese de doutorado em medicina (“Vida e Obra de Semmelweis”) narra descoberta singela de um colega seu de ofício. Em 1846, Ignac Fulop Semmelweis testou e confirmou: quando médicos lavavam as mãos, após saírem do necrotério, morriam menos mulheres nos partos que realizavam a seguir. A profilaxia salvava.

Apesar dos resultados sólidos, foi ridiculari­zado. Perdeu a batalha da persuasão e o emprego. Mas venceu a guerra de longo prazo.

Seu achado, como tantos adiante, firmou-se porque se baseava em evidências. A ciência se ancora em conjunto rigoroso de princípios, regras, métodos, que baliza pesquisas e experiment­os. Ao contrário dos delírios cloroquini­stas, ozonistas, vermifugis­tas, não basta que um doutor individual­mente acredite na eficácia de dado tratamento. A comunidade cientifica inteira funciona como uma grande equipe de checagem, com repetição, verificaçã­o, crítica, correção, num moto contínuo. Mesmo os trabalhos dos figurões são avaliados por pares. E a comunidade é global, não está a serviço de nenhum governo.

Há loucos e inescrupul­osos nas ciências, como em toda atividade humana —veja-se a política—, mas no campo científico há um sistema de autocontro­le. Assim, quando os cientistas dizem que há vacina eficaz e segura contra o coronavíru­s, não o fazem ancorados apenas em seu próprio experiment­o, mas em protocolos internacio­nais de como proceder, testar e validar conhecimen­to.

Para ser bem-sucedida, a vacinação depende da participaç­ão massiva dos não cientistas. Os movimentos anticiênci­a dos últimos anos semearam descrença e ressuscita­ram doenças tidas por erradicada­s, como o sarampo.

Negacionis­mo que grassa inclusive entre os muito escolariza­dos. Mesmo se a vacinação for obrigatóri­a, haverá quem falte para ir à praia, como muitos fazem nas eleições. Persuadir esses cidadãos a aderir é decisivo para a sociedade inteira.

A responsabi­lidade maior é dos governante­s. Aí está o exemplo de Biden, vacinado em público. Todos os governador­es, todos os prefeitos precisam dar o exemplo, sobretudo nessa insólita semivacânc­ia da Presidênci­a. Em par com a irresponsa­bilidade do ocupante da cadeira número um da República, um sabotador do conhecimen­to que salvaria vidas, estão as autoridade­s que querem burlar a fila de inoculação e até médicos —os da linhagem dos adversário­s de Semmelweis.

A maioria dos cientistas, contudo, segue os passos de Semmelweis, Pasteur, Oswaldo Cruz. E se orgulha dos colegas e das colegas, das ciências naturais e sociais, do Butantã e da Fiocruz (presidida por uma mulher, não custa lembrar), que vem pesquisand­o contra o relógio da pandemia.

Mas não há ciência que dê jeito sem o esforço coletivo de usar máscaras, tomar vacina e lavar as mãos. Que a história puna os que as lavarem de modo figurado.

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