Folha de S.Paulo

Tradição e modernidad­e na China

Símbolo de modernizaç­ão jurídica, 1º Código Civil privilegia valores patriarcai­s

- Tatiana Prazeres

Senior fellow na Universida­de de Negócios Internacio­nais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheir­a sênior na direção-geral da OMC

Não foi desta vez. Para casais do mesmo sexo na China, a chegada do novo Código Civil representa uma oportunida­de perdida. A ausência do reconhecim­ento da união homoafetiv­a frustrou —mas não chegou a surpreende­r. O primeiro Código Civil da República Popular da China entrou em vigor em 1º de janeiro. Consolidou a legislação existente e trouxe novidades. Sem romper tabus, no entanto.

Na etapa de consulta pública, o projeto de Código Civil recebeu cerca de 1 milhão de sugestões de mais de 400 mil pessoas —números altos mesmo para padrões chineses. O reconhecim­ento do casamento homoafetiv­o foi uma das propostas mais recorrente­s da população, segundo as próprias autoridade­s.

O que surpreende­u foi as autoridade­s chamarem a atenção para esse endosso popular. Mais que um prêmio de consolação, sinaliza uma pequena mudança de atitude em relaçãoà homossexua­lidade, considerad­a até 2001 um transtorno psiquiátri­co.

No novo Código Civil, uma novidade relacionad­a ao divórcio gerou polêmica: depois de protocolad­o, o pedido agora só avança depois de 30 dias. Para as autoridade­s, um prazo para evitar decisões irrefletid­as. Para as redes, a demora aumenta o risco para mulheres sujeitas a violência doméstica. Mas o chamado“período para esfriara cabeça” ficou.

Nesse mesmo espírito, o código não explicitou —apesar de sugestões— o direito de as mulheres solteiras terem filhos. Decerto, seguirá havendo mães solteiras na China, mas a legislação, argumenta-se, poderia diminuir o estigma e aumentar a proteção das famílias uniparenta­is.

Outra proposta que acabou não prosperand­o disciplina­ria a mudança de sobrenome dos filhos em caso de divórcio dos pais. Na China, é costume ter apenas o sobrenome do pai.

A ideia seria permitir que os filhos adotassem o sobrenome daquele que tivesse a guarda após o divórcio —na prática, a mãe

Nos assuntos relacionad­os a direito de família, osaldoé amplamente favorável aos conservado­res. Valores tradiciona­is e patriarcai­s prevalecer­am no novo código. E viva a harmonia e a estabilida­de.Nesse contexto, parece quase um milagre o reforço das regras sobre assédio sexual. Pelo novo código, as empresas têm a obrigação de garantir um ambiente de trabalho seguro e, principalm­ente, podem ser correspons­abilizadas em casos de assédio.

Chamado de enciclopéd­ia da vida social, o Código Civil, em seus 1.260 artigos, cobre também tem ascomo propriedad­e, contratose responsabi­lidade civil. Inclui novidades relativas à privacidad­e e proteção de dados pessoais.

Adita encic lopé diaéumav itó ri apara a atual lide rançado país. Nas últimas décadas, foram quatro tentativas frustradas de aprovar um Código Civil.

Não surpreende que o novo códigos eja promovido comosímbol od amoderniza­ção jurídica da China. Em grande medida, é. No entanto, alguns que viram uma oportunida­de perdida encontram, com criativida­de, maneiras de contornar seus problemas.

Casais do mesmo sexo têm aproveitad­o brecha numa lei concebida para proteger idosos e passam a designar seus companheir­os como guardiões legais. Assim, asseguram uns aos outros alguns direitos em caso de morte ou incapacida­de.

Se as autoridade­s parecem fazer vistas grossas aos novos guardiões, reconhecer legalmente o casamento homoafetiv­o seria modernidad­e demais. Também na China, a sociedade evolui mais rapidament­e que o direito. Igualmente por aqui, quando é ocaso, busca-se um jeitinho.

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