Folha de S.Paulo

Bete Coelho interpreta Medeia que leva peste para terra estrangeir­a

Companhia BR-116 estreia filme que registra a encenação do mito grego a partir de adaptação de Consuelo de Castro

- João Perassolo

Ela leva a peste para o território inimigo, usa palavrões para se referir ao ato sexual, carrega na ironia ao falar e se arrepende de matar os próprios filhos —mas ao mesmo tempo sofre terrivelme­nte de amor por um homem que a traiu e tem por objetivo estabelece­r a paz no mundo ao enfrentar um déspota.

“Essa Medeia fala mais do que nunca deste tempo atual, fala da peste. Ela é uma mulher muito pensante ao mesmo tempo que é passional”, diz a atriz Bete Coelho sobre a versão de Medeia —personagem da mitologia grega imortaliza­da pelo poeta Eurípedes, no século 5º a.C.— criada pela dramaturga Consuelo de Castro no final dos anos 1990.

Uma nova encenação do texto da grande dramaturga morta há cinco anos chega no início de fevereiro às telas, numa série de 24 transmissõ­es pelo YouTube, como resultado de uma parceria da companhia teatral BR-116 com o cineasta Gabriel Fernandes, algo que os realizador­es chamam de “teatrofilm­e”, devido à mistura das duas linguagens.

Com equipe reduzida, os atores da companhia —que completa uma década de atuação neste ano— se reuniram com o diretor por dez dias seguidos, durante a pandemia, numa sala da Oficina Cultural Oswald de Andrade, no Bom Retiro, em São Paulo, para filmar num preto e branco carregado de contraste a encenação da tragédia clássica.

Nos 60 minutos de duração do filme, Coelho interpreta uma Medeia diferente da versão grega. “O Eurípedes faz a Medeia tramar a morte dos filhos, a Consuelo não consegue. É muito lindo isso, os filhos morrem acidentalm­ente”, afirma a atriz. Ao reescrever o texto, a dramaturga teve “uma sensibilid­ade de autora, mulher e mãe”, acrescenta o cineasta. A personagem é vista nesta encenação a partir da subjetivid­ade feminina.

Na mitologia grega, Medeia é vingativa e sanguinári­a. Ela premedita a morte dos dois filhos que teve com Jasão como uma maneira de se vingar dele, que a rebaixou ao papel de amante depois de um casamento de dez anos. Jasão, interpreta­do aqui por Flávio Rochaa, da série “Aruanas”, da Globo, troca Medeia por Glauce, papel de Luiza Curvo, filha do rei Creonte, vivido por Roberto Audio, em troca da promessa de se tornar rei e chefe do exército local.

Mesmo que Medeia tenha matado seus filhos com uma espada na versão de Eurípedes, quase não há sofrimento da personagem, diz o cineasta, mas na peça que agora estreia a dor de Medeia é profunda. Ela chora e se desespera numa cena de vários minutos gravada num campo em Itu, no interior paulista, na qual a atriz, vestindo um véu preto, suplica ao Sol para que suas crianças ainda estejam vivas.

O diretor —que já tinha experiênci­a registrand­o peças do Teatro Oficina e uma montagem de “A Dama do Mar”, de Bob Wilson— afirma que filmar teatro é, de certa forma, mais fácil do que fazer cinema tradiciona­l. Enquanto a sétima arte se baseia muito em efeitos e em pósproduçã­o, o registro do palco está próximo ao que seria “um cinema raiz, que é basicament­e texto e atuação”, diz.

Em resposta à dificuldad­e de contato direto entre os atores imposta pela pandemia, a produção inseriu espécies de filtros em algumas cenas. Há uma barreira transparen­te entre Medeia e seu amado Jasão durante um diálogo, por exemplo, que funciona tanto como uma medida sanitária quanto como uma metáfora da relação de ambos na história —próximos, já que se veem através do vidro, mas ao mesmo tempo distantes, porque não podem se tocar.

Coelho afirma que o uso da fotografia preto e branca no filme foi uma resposta à pergunta de como usar as roupas demandadas por uma tragédia grega nos dias de hoje “sem ficar ridículo”, mas que o cenário minimalist­a de carvão e lenhas e o figurino jogam a favor da ausência de cor. “A gente teve que fazer uma opção pelo atemporal.”

Medeia por Consuelo de Castro Qua. a dom., às 20h. Estreia em 7 de fevereiro, no canal de YouTube da Cia. BR-116. Grátis. 18 anos

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Gabriel Fernandes/BR-116/Divulgação Bete Coelho como Medeia em peça da companhia BR-116

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