Série celebra o humor ranzinza de Nova York
Martin Scorsese dirige a amiga Fran Lebowitz em atração na qual ela lembra a juventude numa cidade que se perdeu
Fran Lebowitz tem quatro livros publicados. Os dois primeiros, “Metropolitan Life”, de 1978, e “Social Studies”, de 1981, são compilações de crônicas assinadas por ela em jornais e revistas americanos. “The Fran Lebowitz Reader”, de 1994, é uma compilação das compilações, reunindo os melhores textos que aparecem nelas. Já “Mr. Chas and Lisa Sue Meet the Pandas”, também de 1994, é uma história para crianças.
Mesmo com uma bibliografia tão magra e sem lançar nenhum volume há mais de 25 anos, a escritora continua sendo uma figura relevante na cena cultural de Nova York. É convidada frequente dos talk shows noturnos e costuma dar palestras que, no fundo, são espetáculos de comédia stand-up mal disfarçados.
Agora Lebowitz está prestes a alcançar a maior audiência de sua carreira com “Faz de Conta que NY É uma Cidade”.
A série da Netflix se define como documental. Mas está longe de adotar um formato tradicional, narrando a vida do biografado desde o berço. É, na verdade, um retrato em largas pinceladas de uma das mulheres mais interessantes do planeta. Também é, desde já, um dos programas mais engraçados deste ano.
O seriado foi concebido e dirigido pelo cineasta Martin Scorsese, amigo de longa data de Fran Lebowitz. Não é a primeira vez em que os dois trabalham juntos. Em 2010, ele a dirigiu no documentário “Public Speaking”, exibido pela HBO. Ela também interpretou uma juíza no filme “O Lobo de Wall Street”, lançado por ele no ano de 2013.
Cada um dos sete episódios da série é voltado a um tema —livros, esportes, transporte público, dinheiro, artes, tecnologia e a própria cidade de Nova York, para onde Lebowitz se mudou no começo da vida adulta. Scorsese não se furta a aparecer em cena. Sentado à mesa num bar, ele alimenta a amiga com perguntas provocativas e ri desbragadamente das respostas dela.
Outras imagens não são novas, tiradas de diversas entrevistas e conferências que Lebowitz deu nos últimos 40 anos. É divertido perceber que, ainda bem jovem, ela já havia adotado o estilo de vestir que mantém hoje —ternos masculinos que parecem um pouco largos sobre camisas de abotoar abertas no colarinho. A única diferença são os óculos, que passou a usar depois de uma certa idade.
As opiniões também são consistentes. A autora jamais se rendeu à tecnologia. Nunca teve computador, celular, nem mesmo uma máquina de escrever. Sente saudades da Nova York de seus tempos de mocinha, ma sé a primeira ad estruiras ilusões nostálgicas dos demais, lembrando que acidade sempre foi caríssima e difícil de encarar.
Claro que a Nova York de Lebowitz é idealizada, e acessível só a quem tem, se não algum dinheiro, pelo menos uma educação requintada. A autora não esconde sua paixão por festas, bons restaurantes, cinemas antigos, sebos e livrarias. Também reclama de quem anda pela rua sem desgrudar os olhos do smartphone, ou dos pais caretas que não deixam seus filhos comerem doces.
Ela fala de sua infância, de sua família, da maneira rígida como foi educada. Mas um assunto quase não é abordado —sua vida pessoal. Ela foi uma das primeiras celebridades a se assumir lésbica, ainda na década de 1970, mas não revela se está casada, namorando ou seja lá o que for.
Quando se abre, porém, ela ostenta uma verve comparável à de Woody Allen ou à de Jerry Seinfeld, comediantes que compartilham com ela a sensibilidade típica dos judeus de classe média. As conversas que mantém com os interlocutores estão mais para monólogos, em que ela realmente não está interessada na opinião alheia. E por que deveria?
Muita gente vai achar Lebowitz uma pessoa desagradável, com um ponto de vista antiquado e irrelevante. Mas quem gosta de humor ferino, raciocínio rápido e uma dose de bom senso vai se divertir muito com a série “Faz de Conta que NY É uma Cidade”.
Faz de Conta que NY É uma Cidade
Disponível na Netflix