Folha de S.Paulo

Coletti foi ‘carrapato’ de Jânio e teve prova de fogo na cobertura da visita de De Gaulle

- HUMANOS DA FOLHA Ranier Bragon e Rubens Valente

Jornalista que viria a ser o primeiro diretor da sucursal de Brasília da Folha, Claudio Coletti ingressou no jornal aos 16 anos, em 1946, como contínuo das Folhas da Manhã e da Noite (a da Tarde seria criada em 1949), em São Paulo. Na época, as Folhas tinham acabado de ser adquiridas por novos sócios, entre eles José Nabantino Ramos.

Sua principal função à época, afirmou Coletti em entrevista em outubro de 2019, era comprar lanches para o então chefe da Redação, o jornalista e escritor Mario Donato (1915-1992), autor do livro “Presença de Anita” (transforma­da em minissérie pela Globo nos anos 2000). “Trabalhand­o na Redação, comecei a me interessar em fazer jornalismo.”

O êxito nos primeiros passos o levou a ser o repórter destacado para fazer a cobertura de Jânio Quadros, prefeito e governador de São Paulo nos anos 1950. Foi nessa época que viu Getúlio Vargas pessoalmen­te: “Foi na inauguraçã­o daqueles prédios do Ibirapuera, eu estava começando como repórter“.

Cobriu a campanha presidenci­al de Jânio como “carrapato” (repórter responsáve­l por acompanhar de perto um candidato) e, com as perspectiv­as de vitória do político, diz ter recebido um convite de Nabantino ainda durante a gestão de Juscelino Kubitschek: “Ele disse: ‘Você é jovem e na sucursal do Rio [então capital da República] ninguém quer ir pra Brasília. Pensamos em mandar você’”.

Ele lembra ter chegado a Brasília 20 dias antes da inauguraçã­o da capital e começou a preparar a cobertura do evento. As reportagen­s eram datilograf­adas e enviaentre das por meio de um voo diário da Vasp. “Entregava para um passageiro e alguém da Folha pegava com esse passageiro em São Paulo.”

Sobre a linha editorial do período, diz: “Na Redação, o noticiário era favorável a Brasília. Naquele tempo não havia preocupaçã­o com transparên­cia sobre os atos do governo.”

A primeira equipe fixa da sucursal contava com cinco jornalista­s: Ruy Lopes (editorchef­e da Folha de 1972 a 1974), Almyr Gajardoni (que passou depois por várias Redações, elas, Veja), D’Alembert Jaccoud (que chegou a ser preso e submetido a uma simulação de fuzilament­o pela ditadura militar), Carlos Alberto Safatti e Queiroz Campos.

Nesse começo, os jornalista­s redigiam as reportagen­s à mão ou na máquina de datilograf­ia. Um motorista passava nos locais de trabalho (Congresso, Planalto etc.) para recolher o material, que era colocado em um envelope e enviado de avião a São Paulo.

A maior prova de fogo pela qual Coletti passou ocorreu já sob comando dos empresário­s Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, que compraram o jornal em 1962. Foi a visita a Brasília, em 1964, do presidente da França, o general Charles De Gaulle.

Coletti lembra que a visita coincidiu com a chegada à Folha de Claudio Abramo. “Ele prometeu fazer uma revolução na Redação. E o primeiro teste que fez comigo foi a visita do De Gaulle. Pela primeira vez, recebi uma pauta pronta: ‘De Gaulle chega às 10h: verificar se desce com pé esquerdo ou direito, com quem conversa...’. Éramos 15 ou 20 pessoas. Falei: ‘Vamos ser cassados pelo Claudio Abramo’.”

Porém, de acordo com ele, acabou dando tudo certo. “Saiu um material espetacula­r e, no fim da noite, recebi o recado [de Abramo]: ‘Coletti, nota dez para vocês’.”

Ele também lembra que durante o regime militar houve um jornalista que passava informaçõe­s ao SNI (Serviço Nacional de Informaçõe­s) e confirma as torturas sofridas por Jaccoud. “A gente sabia que ele tinha sido espancado.”

Coletti diz ter procurado um general que frequentav­a o mesmo clube que ele para interceder em favor de Jaccoud, que acabou sendo libertado.

Outra história contada por ele é a de que, no final dos anos 1970, o general Golbery do Couto e Silva, fundador do SNI e chefe do Gabinete Civil de 1974 a 1981, ofereceu a Frias de Oliveira uma concessão de TV que, posteriorm­ente, se tornaria o SBT, sob o comando de Silvio Santos.

“O Frias não topou porque achava que não tinha poder de sustentabi­lidade. Ele queria transforma­r a Folha em um grande jornal. Tanto que a Folha passou a se expandir, a ter opinião, a publicar artigos de pessoas contra a ‘Revolução’ [a ditadura militar].”

No comando da Redação à época, Boris Casoy confirma a oferta, mas diz que ela foi feita pelo então governador de São Paulo, Paulo Maluf, que aparentava falar em nome do regime militar.

Casoy diz que a proposta chegou a ser analisada pela cúpula do jornal, incluindo Frias e Otavio Frias Filho (19572018), que assumiria o comando da Redação em 1984, mas que a recusa se deu não por razões financeira­s, mas pela avaliação de que o canal poderia ser um risco à decisão do jornal de atuar com independên­cia em relação à ditadura.

“A interpreta­ção que se teve dentro da cúpula do jornal, e eu participei, foi de que era uma tentativa de cooptar a Folha”, diz Casoy.

Coletti também relata a oferta e recusa de uma mala de dinheiro entregue em mãos por um assessor de Maluf, que almejava a Presidênci­a da República e estaria reclamando da ausência de seu nome nas páginas do jornal.

“Quando estou saindo do gabinete dele, um cara pegou uma mala 007 cheia de dinheiro e me entregou. Disse: ‘Isso é um presente do deputado Paulo’. Aí liguei para o [Octavio] Frias: ‘Ó, aconteceu isso e aquilo’, e a conversa do malote. Ele disse: ‘Continue agindo da mesma forma’. E o malote? ‘Manda entregar lá de volta, ou vá lá mesmo pessoalmen­te e entregue’.”

A Folha tentou contato diretament­e e por meio de pessoas próximas, mas não conseguiu falar com Maluf, hoje com 89 anos.

Os registros da Folha mostram que Coletti deixou o jornal em 30 de agosto de 1979, quando se aposentou, período em que o país já trilhava lentamente para a volta ao regime democrátic­o. Depois disso, assessorou políticos como Franco Montoro. Seu último trabalho foi como assessor do deputado federal Átila Lins (PP-AM), até 2018.

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Pedro Ladeira/Folhapress Coletti, 1º diretor da sucursal de Brasília, em 2019

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