Folha de S.Paulo

Glória feita de selfies

- Bia Braune Roteirista ej orna lista,éau tora do “Almanaque da TV”

Não adianta ter liderado tropas, vencido guerras e estar montado num cavalo majestoso com as patas empinadas no ar: nenhuma glória humana é 100% à prova de pombos.

Estátuas clássicas se esforçam para manter seriedade em praça pública enquanto o governo volta a glamorizar ícones militares. Contudo, nem as aves respeitam os cocurutos dos líderes. Uma subversão concreta já se instaurou. É o fenômeno das estátuas miguxas. Antes, porém, é preciso descer do pedestal.

Nunca vultos históricos foram tão questionad­os. No ano passado, a Prefeitura de Nova York autorizou a retirada de um presidente Roosevelt gigante, ladeado pelas figuras de um índio e de um negro, por conta do viés racial. E, em São Paulo, o monumento do bandeirant­e Borba Gato foi cercado após protestos.

Escrita a ferro e fogo, a história reinterpre­tada ganha novos contornos. Afinal, estátuas podem ser menos um símbolo pesado de poder e mais uma expressão de humor do brasileiro.

Fazendo jus à própria carioquice, o Rio é campeão de informalid­ade em bronze. Onde mais você pode encontrar Cazuza deitado de barriga para cima, descalço, pegando sol no Leblon? Ou tomar cerveja cantando no microfone do Tim Maia, como se a Tijuca fosse um grande karaokê?

Instalados a distância segura de figurões com o peito cravejado de medalhas, esses artistas em metal nos representa­m mais enquanto povo. Duque de Caxias, com sua espada, jamais foi tão abraçado e clicado como Tom Jobim e seu violão no Arpoador. Diariament­e se faz fila para high fives no Dorival Caymmi de Copacabana. E Chacrinha está sempre em vias de jogar um bacalhau nos desavisado­s.

Quanto mais poses e papagaiada­s render, mais popular é a estátua. Se o fã tiver onde se sentar e esperar pelo ônibus, melhor ainda. Noel Rosa ganhou um botequim a céu aberto com mesa, cadeira e garçom servindo uma boa média. Boemia triste, pois vários pedaços da obra foram roubados. Nada que se iguale ao recorde dos óculos do poeta Carlos Drummond de Andrade: parei de contar no 11º par afanado.

Nem tudo é esculhamba­ção. Há também poesia na vida íntima das estátuas. Quando Clarice Lispector completou 100 anos, o escultor de sua delicada figura no calçadão do Leme teve autorizaçã­o da prefeitura e lhe aplicou um lifting com creme antioxidan­te e maçarico. Que mulher, mesmo feita de material tão rígido, não apreciaria manter-se bela e digna, além de eterna?

Sem perder de vista a mais famosa de todas as estátuas do Brasil: sempre de braços abertos, fotografad­a de baixo, num ângulo que só favorece quem é o filho de Deus.

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