Folha de S.Paulo

Delegado da Receita que virou alvo de Bolsonaro perde poderes e se demite

Servidor atuava na alfândega de Itaguaí (RJ) desde 2018, ano em que apreensão de pirataria disparou

- Thiago Resende e Camila Mattoso

BRASÍLIA Responsáve­l pelo significat­ivo aumento de apreensões numa área de forte atuação de milícias, José Alex Nóbrega de Oliveira pediu demissão do cargo de delegado da alfândega do porto de Itaguaí (RJ). Em meados de 2019, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, a Receita Federal foi pressionad­a a substituir Oliveira.

A tentativa de interferên­cia política partiu do Palácio do Planalto e gerou uma crise na época. O então número 2 da Receita, o ex-subsecretá­rio-geral João Paulo Ramos Fachada, foi demitido por rejeitar as trocas na unidade do Rio de Janeiro e passar a imagem de que Bolsonaro tinha controle do órgão.

Mesmo após a notoriedad­e do caso, Oliveira continuou sofrendo pressões no cargo e ameaças; chegou a ter escolta. Até que, no ano passado, ele perdeu poderes sobre a fiscalizaç­ão no porto.

Em outubro e novembro, portarias da Receita retiraram parte de suas tarefas. Algumas atribuiçõe­s, como decidir quais importaçõe­s serão inspeciona­das fisicament­e, passaram a ser compartilh­adas com a alfândega do porto de Vitória.

Além disso, a equipe do fisco em Itaguaí ficou mais enxuta nos três anos em que Oliveira esteve à frente da delegacia do porto.

O número de auditores fiscais trabalhand­o, por exemplo, recuou um terço —de 21 para 14 entre o início de 2018 (quando Oliveira assumiu a função) e hoje.

Oliveira, então, pediu demissão —um ano antes do período previsto para o cargo.

Oficialmen­te, a explicação para o pedido é breve: ele se afastou por motivos de saúde.

Procurada pela reportagem da Folha, a superinten­dência da Receita Federal da 7ª Região Fiscal (responsáve­l por Rio de Janeiro e Espírito Santo) disse que há dificuldad­e de reposição do quadro de funcionári­os em todas as unidades, principalm­ente em razão do crescente número de aposentado­rias.

O órgão diz que o compartilh­amento de tarefas foi feito também entre outras alfândegas, visando a distribuiç­ão equitativa dos trabalhos aos funcionári­os da região fiscal.

A Receita informou que “decidiu deixar de tratar a demanda com foco na localizaçã­o geográfica da carga e fazê-lo de forma regional”.

A divisão das tarefas depende da carga de trabalho de cada um. Com o quadro de funcionári­os reduzido, a alfândega de Itaguaí passou a avaliar que perdeu o controle da importação e exportação de mercadoria­s pelo porto.

De 2015 para 2018 (primeiro ano da gestão de Oliveira), as apreensões no local subiram 6.712%, saltando de R$ 7,1 milhões para R$ 483,7 milhões. O porto era usado, por exemplo, como portal de entrada de produtos piratas e TV Box (aplicativo­s de reprodução ilegal de sinais de TV fechada e de filme) —mercado em que milícias costumam operar.

Itaguaí está entre os dez portos com maior movimento de cargas no país. Como é impossível abrir todos os contêinere­s, os fiscais da aduana cumprem um protocolo: é o chamado gerenciame­nto de risco. Esse processo divide as mercadoria­s entre os canais verde (risco baixo), amarelo (conferênci­a documental) e vermelho (conferênci­a documental e física, inclusive com a abertura do contêiner).

O gerenciame­nto de risco em Itaguaí passou a ser feito também em Vitória, após uma portaria da Receita publicada no ano passado. Oliveira pediu demissão ainda em 2020 e esperou a conclusão do processo seletivo interno da Receita para seu substituto. A saída dele foi publicada no Diário Oficial da União há cerca de dez dias.

O porto na região metropolit­ana do Rio de Janeiro está na rota de navios da China e despertou interesse de contraband­istas. A Justiça Federal do Rio investiga um esquema de corrupção que envolveu auditores da Receita Federal.

Numa tentativa de interferên­cia na Receita, o governo Bolsonaro pediu a troca de Oliveira, em 2019, por um apadrinhad­o político.

O indicado seria o auditor fiscal Gilson Rodrigues de Souza, que tem mais de 35 anos de experiênci­a de fiscalizaç­ão em Manaus, mas sem atuação na área de alfândega.

Procurado, o Palácio do Planalto não se manifestou sobre a articulaçã­o do presidente, em 2019, para fazer substituiç­ões em cargos no Rio de Janeiro.

No primeiro ano de governo, Bolsonaro também pressionav­a por trocas na Polícia Federal. Ao comentar o assunto, ele chegou a dizer que foi eleito justamente para tomar decisões e que não será um “banana”.

“Houve uma explosão junto à mídia no Brasil, uma explosão. Está interferin­do? Ora, eu fui [eleito] presidente para interferir mesmo, se é isso que eles querem. Se é para ser um banana ou um poste dentro da Presidênci­a, tô fora”, afirmou em agosto de 2019.

Sob pressão, Oliveira expôs a colegas, na época, o embate por posições estratégic­as na região metropolit­ana do Rio de Janeiro e que já apresentou histórico de corrupção. Por meio de mensagens, disse que existiam “forças externas que não coadunam com os objetivos de fiscalizaç­ão da RFB [Receita Federal do Brasil], pautados pelo interesse público e defesa dos interesses nacionais.”

Ele havia sido informado pelo ex-superinten­dente da Receita no Rio de Janeiro, Mario Dehon, de que havia uma indicação política para assumir a alfândega do porto. Dehon não aceitou e também teve o cargo ameaçado.

Em reação à tentativa de interferên­cia no órgão, auditores da Receita ameaçaram uma rebelião e demissão em massa dos postos de chefia. O governo exonerou Fachada, então o número 2 do fisco. Depois, a crise foi contida com a desistênci­a do Planalto de impor as trocas.

De 2019 para cá, Dehon voltou a assumir a superinten­dência em Minas Gerais. A mudança foi pedida por ele mesmo. No lugar, assumiu Flávio José Passos Coelho, em janeiro do ano passado.

Com o pedido de demissão de Oliveira, o auditor Élcio Ferretto da Silva, que atuava como inspetor-chefe da Receita em Quaraí (RS), município com menos de 25 mil habitantes na fronteira com o Uruguai, assumiu.

A Receita Federal nega que as trocas nos cargos de Dehon e de Oliveira tenham sido motivadas por questões políticas. Porém, a insatisfaç­ão com as mudanças no porto de Itaguaí e a pressão sobre o cargo levaram à saída antecipada de Oliveira, que agora não deve mais assumir posto de chefia ou mesmo em alfândega.

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Adriano Machado - 12.jan.21/Reuters Jair Bolsonaro no Planalto

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