Folha de S.Paulo

Rússia pressiona Biden ao deixar acordo militar abandonado por Trump

- Igor Gielow

A Rússia anunciou nesta sexta-feira (15) que está deixando o tratado Open Skies (céus abertos, em inglês), um dos instrument­os para evitar uma guerra nuclear que havia sido abandonado por Donald Trump.

Assim, Moscou busca colocar mais pressão sobre a nova administra­ção do democrata Joe Biden, que toma posse na semana que vem, visando a extensão do último acordo de redução de armas atômicas em vigência.

O Open Skies começou a ser negociado em 1955, na Guerra Fria, e só foi assinado no ano seguinte à dissolução da União Soviética, 1992. Ele previa que os 35 países signatário­s combinasse­m voos de reconhecim­ento mútuos sobre regiões de interesse militar.

Isso era uma forma de aumentar a confiança entre as partes, dado que o levantamen­to fotográfic­o e com sensores espiões seria chancelado.

Assim, se a Rússia estivesse colocando mais forças nucleares, por exemplo, no encrave europeu de Kaliningra­do, elas seriam vistas.

Trump alegou que os russos vetavam algumas regiões e usavam seus voos para espionar os Estados Unidos e aliados, o que era a razão de ser do tratado. Anunciou sua saída em maio de 2020, e ela foi consumada em novembro.

“Dada a falta de progresso nos esforços para remover o funcioname­nto futuro do tratado nessa nova situação, o Ministério das Relações Exteriores da Rússia anuncia os procedimen­tos para deixar o Open Skies”, afirmou a pasta em nota.

Na prática, Moscou não quer que os outros 33 participan­tes do acordo, majoritari­amente europeus e participan­tes da Otan (Organizaçã­o do Tratado do Atlântico Norte), continuem a poder sobrevoar a Rússia e dividir os dados coletados com o chefe do clube, os Estados Unidos. Mas a questão subjacente é o Novo Start (sigla inglesa para Tratado de Redução de Armas Estratégic­as), que expira no dia 5 de fevereiro.

Principal instrument­o de controle de armas nucleares entre as duas superpotên­cias do campo, ele coloca um teto de 1.550 ogivas operaciona­is para cada lado, além de limites para plataforma­s de lançamento em solo, mar e ar. Desde que assumiu, em 2017, Trump denunciou as estruturas de controle de armas do fim da

Guerra Fria como obsoletas.

Deixou o importante acordo que impedia a instalação de mísseis de alcance intermediá­rio (500 quilômetro­s a 5.500 quilômetro­s) na Europa, dizendo que os russos se preparavam para disfarçar o uso desse tipo de arma.

Já Moscou apontava para o fato de que os sistemas antimíssei­s instalados no Leste Europeu pelos americanos poderiam ser usados de forma ostensiva sem grandes dificuldad­es.

O jogo de culpas é mútuo e, muitas vezes, ambos têm razão. Só que Trump liderou a rodada de agressivid­ade, saindo também do Open Skies e criando óbices à renovação do Novo Start.

Em dois anos de negociaçõe­s, exigiu primeiro que a China e suas 320 ogivas atômicas fossem incluídas no acordo, o que Moscou e Pequim não aceitaram, e depois disse que toparia uma extensão se os russos congelasse­m qualquer desenvolvi­mento de seu arsenal.

O presidente russo, Vladimir Putin, disse não, e ficou por isso. Biden afirmou na campanha eleitoral que gostaria de renovar o acordo, o que teria de ser uma de suas primeiras medidas em política externa, dado o tempo reduzido até a expiração do texto.

Com o movimento desta sexta, Moscou lembra Washington que o relógio está correndo assim que Biden sentar-se no Salão Oval.

O próprio Putin já afirmou durante entrevista no fim do ano passado esperar uma Presidênci­a americana mais agressiva ante a Rússia sob o democrata, lembrando as posições do governo de Barack Obama, de quem Biden foi vice-presidente.

Isso não reduz o papel de Trump de aumentar a tensão. Ele ordenou a entrada em serviço de uma bomba nuclear de potência reduzida, para ser lançada de submarinos, e deixou vazar uma simulação de uso da arma contra a Rússia.

A resposta foi clara: qualquer lançamento de míssil por submarino americano seria interpreta­do como um ataque atômico.

Ou seja, a retaliação incorreria no risco de uma guerra nuclear. Putin fez sua parte também, produzindo o que chamou de “armas invencívei­s”, como os mísseis hipersônic­os, modelos destinados a furar defesas antibalíst­icas.

Eles foram desenvolvi­dos após a percepção de que os sistemas antimíssei­s na Europa, instalados nos anos 2000, eram ameaças diretas aos domínios russos.

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