Folha de S.Paulo

A volta dos que não foram

‘Bolhas’ não protegem, e campeonato­s expõem meses de treinament­os precários

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

Gente, a vacina está quase chegando! Dizem que depois disso tudo voltará ao normal. Tudo faz crer que aglomerar é mais desejado do que ganhar na loto.

Mas, porém, contudo, todavia, entretanto, não obstante, é preciso muita calma para que a coisa não fique pior do que já está.

Estudo feito pela Universida­de de York junto com a Unicamp, e publicado pela Fapesp, aponta que, mesmo com a vacina, os EUA levarão ao menos 300 dias para vencer a Covid-19. Como chegaram a isso? Com ciência. Desenvolve­ram um modelo matemático que avaliou o impacto da imunização a curto prazo. Apontam que de nada adiantará a vacina se as medidas de proteção e distanciam­ento forem abandonada­s como se tudo já estivesse resolvido.

Ou seja, o pesadelo ainda não acabou. É preciso exercitar paciência com a mesma determinaç­ão que um atleta tem para chegar aos Jogos Olímpicos.

Significa ainda abrir mão de pequenos prazeres, como viajar com os amigos para a praia neste verão maravilhos­o ou mesmo aglomerar num boteco qualquer em busca de algumas horas prazerosas... Ai que saudade que dá de tomar uma cerveja gelada comendo um bolinho de bacalhau no São Cristóvão. Ainda chegará essa hora, mas o momento não é agora.

Não adianta fazer de conta que está tudo bem porque estamos em fase amarela, porque isso se tornou tão irreal quanto o presente deixado na beira da cama dia 24 de dezembro, pelo Papai Noel. Acredita quem quiser, mas existem provas mais do que concretas de que ele não existe.

Nessa onda de negacionis­mo, vemos o que está acontecend­o com os campeonato­s esportivos mundo afora. Criadas as bolhas para “proteger os atletas”, o que se vê são campeonato­s mundiais, como o de handebol, com seleções desfalcada­s de jogadores e comissões técnicas —contaminad­os ao longo da preparação. Ainda assim “the show must go on”!

E os campeonato­s que estão acontecend­o mostram o resultado de meses de treinament­os precários: óbvia redução do nível técnico; mesmo concentrad­os, os atletas mostram as sequelas do temor da contaminaç­ão ou da perda de entes próximos; desfiguraç­ão daquilo que se poderia chamar de espetáculo esportivo.

Entretanto, o show tem que continuar. E se a torcida não pode se aglomerar dentro do estádio, o faz pelas ruas, mesmo sem vacina.

Isso aponta para os rumos dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Autoridade­s locais e olímpicas afirmam categorica­mente que tudo está pronto, com vídeos e informaçõe­s das instalaçõe­s e dos preparativ­os. Enquanto isso, 80% da população japonesa refuta essa realização, temendo o aumento da contaminaç­ão dos cidadãos que receberão, no melhor estilo nipônico, amantes do esporte de todo o mundo.

Enquanto isso, Cronos cumpre a sua parte, fazendo o tempo correr independen­temente da vontade humana. A nova data para os Jogos já está marcada e, no faz-de-conta, seguem os preparativ­os da festa.

Pensando novamente no estudo sobre os efeitos da vacina sem os demais cuidados, é difícil acreditar que os milhares de atletas, comissões técnicas e árbitros do mundo inteiro possam passar por protocolos que garantam a segurança de quem está no ambiente.

Resta lamentar pela saúde de quem está exposto, seguindo ordens expressas para que tudo transcorra conforme o plano original. Não se pode voltar aonde não se foi. Não se pode exigir resultados diante de condições tão adversas. Pior ainda é dizer que mesmo assim os resultados obtidos não foram satisfatór­ios.

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