Folha de S.Paulo

Manaus e o pirarucu que morre afogado

- Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

Dizem que a asfixia é a pior das mortes. Incapaz de asseverar, pois não sou sommelier de morte. Nunca morri nem ouvi relatos fidedignos de quem tenha morrido alguma vez. Mas me parece plausível.

A sensação de asfixia traz memórias da morte para quem, por exemplo, luta contra um fragmento de osso de frango que vai de gaiato para a traqueia. Ou para quem, como eu, sofre de apneia do sono. Se nunca morri, consigo imaginar.

A asfixia vem do afogamento na água. Vem do bloqueio físico das vias aéreas. Vem de todas as panes possíveis nos sistemas encarregad­os de captar e distribuir o oxigênio pelo corpo. Vem da falta de oxigênio, por óbvio que possa soar.

O Brasil está morrendo asfixiado. No sentido mais literalmen­te literal.

Pensemos de forma figurada, porém. Manaus é o coração da Amazônia, que é o pulmão do planeta. Imagens equivocada­s e bregas, que adquirem tons trágicos na circunstân­cia presente. A própria noção de tragédia, gênero narrativo, é branda perto do horror em curso em Manaus.

Na doutrinaçã­o do jornalismo gastronômi­co, me disseram que Belém é a cornucópia da cultura alimentar genuína do Brasil. Nada contra, mas sei lá. Algo sempre me arrastou, contra a corrente do grande rio Amazonas, para Manaus.

Na primeira vez em que estive lá, cheguei domingo à tarde. Ruas desertas, quase dava para ouvir os ovos fritando no asfalto. Ao anoitecer, as pessoas saíram das casas para a rua. Estratégia­s de sobrevivên­cia.

Mitos podem ser desastroso­s. A propalada fartura da Amazônia é um desses desastres míticos.

Manaus resiste como enclave humano num ambiente demasiado hostil. É quente e úmida a ponto de embaçar os óculos. É insalubre. Sempre foi pestilenta. Ironicamen­te, agora a malária ganha a dimensão comparativ­a de uma gripezinha.

Tudo berra e grita na Amazônia central, nada é sutil. A teimosia de quem se assentou ali criou paisagem exuberante também na gastronomi­a.

Manaus tem o mercado Adolpho Lisboa, rival do VerO-Peso em arquitetur­a e variedade de comidas assombrosa­s, menos muvucado.

Tem o Banzeiro, restaurant­e espetacula­r com convenient­e sucursal em São Paulo. Tem o Bar do Armando, ao lado do Teatro Amazonas. Tem o Shin Suzuran, com tataki de tucunaré e outros exemplares de fusion food para os japoneses da Zona Franca. Tem até um restaurant­e que resgata formigas e pimentas das tradições indígenas do alto rio Negro. Eu falei que não há sutileza?

Tem tambaqui, tem sardinha de rio, tem matrinxã. Tem o pirarucu: lerdo, gordo, cascudo, sedentário, enorme, nada voraz e melancólic­o peixe de águas paradas. Tipo eu.

O pirarucu é um raro peixe de respiração aérea, precisa subir à superfície para tomar oxigênio. Se impedido de respirar fora d’água, o pirarucu é um peixe que morre afogado. Patético, tanto quanto morrer por asfixia no pulmão do planeta.

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