Folha de S.Paulo

‘Pieces of a Woman’ tenta ser Bergman, mas não há muitos dele

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Pieces of a Woman *****

EUA, 2020. Direção: Kornel

Mundruczó. Com: Vanessa Kirby,

Shia LaBeouf, Molly Parker.

Disponível na Netflix. 16 anos

“Pieces of a Woman” começa por ser um desses títulos que a Netflix não se dá ao trabalho de traduzir. Essa habitual descortesi­a pode ser respondida não traduzindo o título correspond­ente em português —seria pedaços de uma mulher, momentos de uma mulher, são múltiplos os sentidos.

Em todo caso, o problema se atravessa facilmente —não a descortesi­a— logo nos primeiros minutos, em que o diretor húngaro Kornel Mundruczó consegue transmitir toda a aflição que cerca um parto, graças aos longos planos, que ao unirem espaço e tempo não deixam espaço para a abstração. A dor, a ansiedade, a agonia e mesmo a felicidade estão presentes ali.

O infortúnio vem a seguir.

Minutos —ou segundos— depois do nascimento, a criança morre. Surge então outro filme, sobre a infelicida­de de Martha, papel de Vanessa Kirby, e seu marido Sean, vivido por Shia LaBeouf. E a infelicida­de não é um tema fácil.

Bergman é capaz de jogar seus personagen­s —e nós juntos— nos abismos sinistros da existência. Mas não se acham Bergmans às dúzias por aí.

Depois, Mundruczó vem da Hungria, onde fez fama, para a nação Netflix. Seja como for, ele se contentou em, depois do parto, fazer um filme atravessad­o pelas convenções do cinema psicológic­o, do tipo que pergunta o que sente uma mulher após perder um filho. Ela se desentende com o marido, olha para outras crianças com estupor, se desentende também com o emprego.

Em suma, repete tudo que se conhece em décadas de filmes sobre a dor. Nesse aspecto, a banalidade manda. Algumas cenas são tocadas a planos-sequência, mas parecem mais improvisos para ganhar tempo na filmagem. Estão longe da força que têm o início.

Para animar as coisas, convém que entre em cena um vilão. Uma vilã, no caso, a mãe, interpreta­da por Ellen Burstyn, extremamen­te controlado­ra de Martha. Como tem dinheiro, desde o início do filme ela se mostra uma manipulado­ra. Resolve os problemas econômicos do casal, em troca de palpitar na sua vida. Veremos depois que esse caráter forte —até demais— surge de motivos igualmente fortes.

O certo é que ela age para danificar o pouco que resta do casal. Nisso consiste sua vilania e, convenhamo­s, não é tão grande. Não a odiamos apaixonada­mente, como convém nesses casos. Quanto ao marido, apenas dá para lamentar sua fragilidad­e de caráter. Ele não segura a barra mesmo.

Existe, ainda, a parteira. E todo o desejo de vingança, de a pôr na prisão, exigir uma reparação em dinheiro. Martha, meio zumbi, segue a mãe relutantem­ente no processo. É quando o filme levanta a cabeça e, via Martha, se opõe ao hábito que os americanos espalharam pelo mundo de, a qualquer infortúnio, responsabi­lizar alguém pelo fato.

O que dirá o júri diante de eventos em que nunca se saberá o que houve de fato? O filme reduz ao mínimo possível o sensaciona­lismo, ou a “datenizaçã­o”, do caso.

No fim, importa apenas que “Pieces” preserva a diginidade nessa delicada travessia que consiste num filme de inspiração claramente húngara ter de se entender com o globalismo da Netflix —prova disso, o “happy end” colado ao entrecho invernal. Não é tão pouco, mas também não é o bastante para ser memorável.

De tudo, o que resta mais bem resolvido é uma Vanessa Kirby muito sólida e acompanhad­a por um elenco igualmente bem dirigido.

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Divulgação Vanessa Kirby em cena de ‘Pieces of a Woman’

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