Folha de S.Paulo

Nunca diga o que está pensando

Em ‘O Poderoso Chefão’, um épico americano com família, catolicism­o e corrupção

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

No primeiro ato de “O Poderoso Chefão”, Don Vito (Marlon Brando), o patriarca dos Corleone, repreende o filho Sonny ( James Caan), que divergiu dele numa conversa com mafiosos de outro bando. “Nunca diga o que está pensando fora da família,” ensina-lhe o pai.

No terceiro e último ato, o conselho é virado do avesso. O protagonis­ta agora é Michael (Al Pacino), que de herói de guerra, universitá­rio e moço de boa índole transmutou-se em chefe de quadrilha. A conversa é só entre os Corleone. Não há gente de fora.

Vincent (Andy Garcia), sobrinho e herdeiro de Michael, discorda com veemência do tio. O padrinho o chama na chincha: “Nunca deixe ninguém saber o que está pensando”. A família, ninho cálido e inexpugnáv­el da lealdade, some da frase. O maioral do clã deve desconfiar até dos parentes.

Rever os três “O Poderoso Chefão” de uma vez, agora que o último deles foi relançado com uma edição definitiva, permite perceber esse e outros detalhes. Eles apontam no sentido da unidade, põem de pé um épico de quase nove horas.

É ocioso especular se a unidade foi intenciona­l, se estava na cabeça de Francis Ford Coppola desde o primeiro filme. Ou se foi produto da pressão da Paramount, que o espremeu até que ele —primeiro inebriado pelo sucesso, depois falido e endividado— dirigisse outros dois capítulos.

O decisivo é a inteireza dos temas, do visual e da atuação do elenco. Os três filmes inexistem em separado. São atos harmônicos de uma obra sobre família, imigração, catolicism­o e o continuum entre crime e capital. “Acredito na América” é sua primeira frase.

A inteireza e a harmonia levam “O Poderoso Chefão” ao terceiro atributo da beleza, segundo o Tomás de Aquino de Stephen Dedalus: o esplendor. Não é para menos. O filme foi dirigido pelo autor de outra obra prima, “Apocalypse Now”. Contou com quatro atores de primeira: Brando, Pacino, De Niro e o inventor do método de atuar americano, Lee Strasberg.

Além de tema, a família é motor do filme. A música é do pai do diretor, Carmine Coppola. O grande papel feminino foi interpreta­do por sua irmã, Talia Shire, que de jovem ingênua vira uma Lady Macbeth que incita a vendeta do irmão e serve cannoli envenenado­s.

O tempo se encarregou de comprovar que sua filha Sofia, tão atacada na estreia como atriz, tem um desempenho comovente como MaryCorleo­ne.Atéseusobr­inho Nicolas Cage está bem. Por fim, sua mãe, Italia, se finge de cadáver numa ponta.

Os entretons de marrom granulado de Gordon Willis são sobrecarre­gados nas cenas em Nova York e no Vaticano; e radiosos em Havana, em Nevada e na Sicília. Os núcleos sombrios do crime, da religião e das finanças corrompem a claridade dos lugares abertos e periférico­s.

Há uma alusão a “A Execução de Maximilian­o”, de Manet, no fuzilament­o de Sonny: o rosto dos atiradores não aparece, o crime é anônimo e molda um sistema. A inspiração de Manet foi o Goya de “Os Fuzilament­os de Três de Maio” —e o pintor espanhol permeia o filme todo.

“O Poderoso Chefão”, com isso, ultrapassa o gênero filmes de gângster. Está numa categoria diversa de “Scarface”, de Hawks, de “Os Bons Companheir­os”, de Scorsese, e de “Era uma Vez na América”, de Leone. É o sumo do cinema americano, posto a serviço de uma estética que circula entre o particular e o geral, o abstrato e o concreto.

O catolicism­o é ponto de passagem dessa dialética. “O Poderoso Chefão” encena —ou se refere a— os sete sacramento­s, batismo, crisma, confissão, eucaristia, ordenação, matrimônio e extrema-unção. Há até morte e ressurreiç­ão, mas em arte, na récita da “Cavalleria Rusticana”, em Palermo.

Cada sequência que exibe um sacramento é entremeada por flashes de gângsteres que assassinam a sangue frio. Ou então serve de cenário para que os Corleone arquitetem novas mortandade­s. A espiritual­idade religiosa é vista como uma ritualizaç­ão da obediência à força, que vige no mundo real.

Michael é o herói. Quer tirar a família do submundo de violência, corrupção e crime, para que viva legal e legitimame­nte. Quer arrancá-la do inferno da acumulação primitiva e levá-la ao paraíso do capital estável, feito de riqueza reluzente e filantropi­a. O filme se passa no purgatório.

Ao se associar ao banco do Vaticano para conquistar uma das maiores empresas imobiliári­as do mundo, Michael constata que a Igreja é tão brutal e corrompida quanto a máfia. Mata o irmão, a mulher o larga, a filha morre nos seus braços. Perde a família, os negócios, a alma. Não há superação neste mundo.

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Bruna Barros

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