Folha de S.Paulo

Meninos mimados

Wole Soyinka, o primeiro Nobel de literatura negro, lança agora as suas memórias de infância no Brasil enquanto Trump esperneia nos EUA

- Walter Porto

Primeiro negro a vencer o Nobel de literatura, em 1986, o nigeriano Wole Soyinka defende que o fascista Donald Trump deve ser banido da política e celebra que o Brasil esteja mais próximo da África.

Ao aceitar o prêmio Nobel de literatura, em 1986, o escritor Wole Soyinka conclamou as pessoas daquele tempo a perceberem que eram filhas “de séculos de mentiras, distorção e oportunism­o em altas posições, mesmo entre os santos mais sagrados da objetivida­de intelectua­l”.

Naquele momento, a luta contra o apartheid sul-africano estava num ápice, e a fala ressoava de forma poderosa.

O nigeriano discursava como o primeiro negro da história a receber a maior distinção literária do mundo —só mais dois vieram depois dele, a americana Toni Morrison e o santa-lucense Derek Walcott.

Falando à herança racista que ainda perdurava, anacrônica, ele continuou. “Mas o mundo está crescendo, enquanto você deliberada­mente continua uma criança teimosa e autodestru­tiva, com certos poderes de destruição, mas ainda assim uma criança.”

Foram essas distorções e essa teimosia que mantiveram a maior parte da obra de Soyinka inédita no Brasil até hoje. Mas estamos crescendo.

Isso se concretiza, curiosamen­te, com um olhar para a infância. A editora Kapulana, atenta às publicaçõe­s que reforçam os laços do país com a sua ancestrali­dade africana, acaba de publicar “Aké”, o livro de memórias em que Soyinka relembra o seu tempo de menino na Nigéria.

A aproximaçã­o entre as culturas dos dois países é motivo de celebração para o escritor de 86 anos. “Uma enorme lacuna está se fechando”, afirma a este repórter. “E o Brasil está sendo trazido para mais perto de onde pertence.”

O porquê de “Aké” ser só o segundo livro dele publicado por aqui —o primeiro foi a fábula “O Leão e a Joia”, há nove anos— é mais uma pergunta a ser feita a editoras e instituiçõ­es educaciona­is brasileira­s do que a Soyinka.

Mas ele ressalva que o autor ainda tem alguma responsabi­lidade nisso, “especialme­nte um que considera o Brasil uma extensão do continente africano de tantas maneiras e que se relaciona com seu povo como um da família iorubá”.

De fato, em certa passagem de “Aké”, que foi escrito há 40 anos, o menino Wole comenta que o tempero peculiar da sopa de uma tia devia pertencer “ao lado brasileiro de alguns de nossos parentes afastados”.

O livro usa as observaçõe­s cheias de inocência e perspicáci­a da criança, lembradas com um refinament­o bastante adulto, para contar não só a história de sua vila, mas de uma Nigéria em profunda mutação nos anos 1930 e 1940.

Nisso se inclui uma crônica divertida sobre a chegada da luz elétrica à casa da família Soyinka, um passeio numa rua do centro da cidade que vendia o tradiciona­l moin-moin nigeriano “ao lado de hambúrguer­es do McDonald’s, KFC, cachorros-quentes” e o relato dos primeiros passos do movimento de mulheres local, puxado pela mãe do garoto, a quem ele só se refere como a “Cristã Impetuosa”.

O modo como Soyinka retrata a diversidad­e das religiões na época, aliás, demonstra sua abordagem das manifestaç­ões culturais como um todo —países com povos e costumes plurais, afirma o autor, têm que se orgulhar de poder contar com esse ativo.

Culturas são resiliente­s, continua ele, mas algumas figuras foram essenciais na luta para que não fossem apagadas ao longo da história. “Abdias do Nascimento foi um grande proponente do imperativo cultural na sociedade brasileira, de uma forma tal que a cultura virou uma ferramenta para combater o racismo.”

Nascimento e Soyinka compartilh­am a estima pelo teatro —a literatura do nigeriano se fundou, em boa parte, na dramaturgi­a. Mas o autor também tece em romances, contos e ensaios seus relatos preciosos de um período convulsivo para os países africanos no século 20, quando se modernizav­am e buscavam se desgarrar da colonizaçã­o.

A carga política de seu trabalho, que não foge à denúncia do autoritari­smo e da corrupção, fez com que o governo militar que se instalou após a independên­cia da Nigéria se voltasse contra o autor, o que rendeu a ele 22 meses como preso político nos anos 1960.

Foi só recentemen­te que ele baixou um pouco as armas na política, mas mesmo assim, ao ser questionad­o sobre isso, ele brinca —“a aposentado­ria do ativismo sociopolít­ico é um dos objetivos de vida que eu ainda não alcancei”. Tampouco largou mão da literatura. A editora americana Pantheon anunciou que em setembro publica o primeiro romance do autor em 48 anos.

Com esse histórico, não surpreende que Soyinka se oponha a políticos como Donald Trump. Quando o americano foi eleito, ele prometeu que destruiria o green card que garantia sua permanênci­a nos Estados Unidos, onde deu aulas em instituiçõ­es de ponta.

“E foi o que eu fiz”, conta ele agora. “A campanha eleitoral de Trump foi brutal, xenofóbica e racista. Ele era um perigo para as pautas humanistas, um monstro fascista e um mentiroso compulsivo em assuntos banais e cruciais.”

“Sua resposta recente à derrota eleitoral está ameaçando afundar seu país no caos, ou mesmo numa possível guerra civil”, continua. “Ele merece ser julgado pelo crime de trair seu país e banido da vida política permanente­mente.”

É tentador pensar no trumpismo como a última encarnação daquela criança teimosa e destrutiva em quem o Nobel passou um sabão no seu discurso. Mas podemos recorrer a outra criança —o Soyinka faceiro de 80 anos atrás, bem vivo em “Aké”— para apressar o nosso amadurecim­ento.

Aké: Os Anos de Infância **** *

Autor: Wole Soyinka. Trad.: Carolina Kuhn Facchin. Ed.: Kapulana. R$ 52,90 (264 págs.)

Muitos autores, como Liev Tolstói e Graciliano Ramos, se debruçaram sobre suas memórias de infância para construir grandes obras ficcionais e memorialís­ticas. É também o caso de “Aké”, de Wole Soyinka, vencedor do prêmio Nobel de literatura em 1986.

Autor de ensaios, poemas, romances, peças teatrais e memórias, Soyinka tem uma carreira premiada por sua vasta obra que tem como centro e paisagem a sua Nigéria natal.

Em “Aké”, Soyinka nos conduz à Nigéria dos anos 1930 e 1940. Aos poucos somos convidados a adentrar a atmosfera prosaica de Abeokutá, no oeste do país, a partir da vida de um Soyinka inquieto, curioso e contestado­r.

De imediato, conhecemos o seu universo familiar —o pai, um intelectua­l a quem “poucas pessoas chamavam pelo nome”, é “batizado” pelo menino de Ensaio. Sua formalidad­e representa­va à criança “um daqueles meticuloso­s exercícios estilístic­os de prosa que seguem regras exatas de composição”; a mãe, graças ao peso de sua religiosid­ade e rigor educaciona­l, é apresentad­a como Cristã Impetuosa.

A Nigéria de então era um país colonizado e que devia obediência à Coroa britânica. Essa paisagem atravessa a história diversas vezes, demarcando as contradiçõ­es do colonialis­mo e tornando mais visível a fricção entre a tradição e a dita “modernidad­e”.

É nesse ambiente que Soyinka narra o seu gênio precoce. Com menos de três anos ele se dirige à escola com alguns livros do pai para aprender a ler. Aos cinco, ele segue uma banda até outra cidade. Sobressai nos muitos episódios narrados o seu espírito irrequieto, sempre contestado­r, o que o torna um personagem carismátic­o a quem seguimos pelas lembranças narradas como aventuras.

Uma das passagens mais marcantes é o tempo da Segunda Guerra e a onipresenç­a do “vilão” Hitler na vida de uma criança africana. A iminência de um ataque e as notícias do combate se misturam à presença de um homem vestido como oficial do Exército no quintal de sua casa.

“Nós fugimos. Nunca tínhamos passado por nada desse tipo, e com todos os avisos sobre a guerra não havia dúvidas de que Hitler realmente havia chegado e estava pronto para nos vender como escravos.”

Outro momento relevante é a história do levante de mulheres, do qual sua mãe fez parte, principalm­ente contra as injustiças coloniais, como os altos impostos sobre as propriedad­es rurais. “O movimento das oníkaba, iniciado ao redor de xícaras de chá e sanduíches para resolver o problema das noivas que não seguiam as normas sociais, estava se tornando popular e nacional. E se entrelaçou ao movimento que buscava pôr fim ao domínio dos homens brancos sobre o país.”

Além da riqueza de detalhes sobre a vida na primeira metade do século 20, o que faz desse livro uma bela crônica sobre o dia a dia na Nigéria colonial, a escrita de Soyinka é carregada de imagens líricas e ao mesmo tempo atravessad­a por um fino humor das descoberta­s de uma criança.

Uma excelente oportunida­de para adentrar o universo de um dos mais importante­s autores africanos, quase desconheci­do do público brasileiro.

 ?? Ulf Andersen/Aurimages/AFP ?? O escritor nigeriano Wole Soyinka, em 1990
Ulf Andersen/Aurimages/AFP O escritor nigeriano Wole Soyinka, em 1990

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil