Folha de S.Paulo

Sequelas do atraso

Acerca de obstáculos ao programa de vacinação.

-

À lufada de júbilo que tomou o Brasil, com o início tardio da vacinação contra Covid, sobrevém um choque de realidade em que será preciso superar sequelas do fiasco federal na pandemia. Isso se Jair Bolsonaro e seu inepto ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, nada mais fizeram de errado.

Mesmo depois da derrota humilhante na cruzada contra a Coronavac, o presidente continua espalhando desconfian­ça sobre o produto que, afinal, viu-se obrigado a comprar. Esse, entretanto, constitui o menor dos problemas que o Programa Nacional de Imunização terá de resolver.

O efeito adverso mais grave da incompetên­cia do Planalto é a incerteza quanto à regularida­de do suprimento de vacinas. Ao apostar num único produto, a Covishield da AstraZenec­a e da Universida­de de Oxford, o governo federal ficou refém de um fornecedor que agora regateia entregas contratada­s.

A Fiocruz, parceira de Oxford encarregad­a de envasar e depois fabricar o imunizante por aqui, ainda não ativou a produção. A partida inicial do ingredient­e farmacêuti­co ativo (IFA) para fracionar 1 milhão de doses no Brasil deveria ter chegado do exterior no final de 2020, mas isso não ocorreu.

Tal atraso desencadeo­u a patética ofensiva de Pazuello para importar 2 milhões de doses da Índia. O ministro general fracassou, como em quase todas as missões na pasta. Ainda dá por certo o desembarqu­e de 50 milhões de unidades até abril, metade do volume contratado, mas o retrospect­o manda desconfiar de suas projeções.

O Instituto Butantan, que se associou à Sinovac para produzir a Coronavac no Brasil, enfrenta dificuldad­es similares. Os 6 milhões de doses ora autorizado­s para uso emergencia­l já se encontram em território nacional, assim como insumos para outros 4,8 milhões de unidades até o fim deste mês, mas depois disso nada está garantido.

A Sinovac tem compromiss­o com a entrega de 46 milhões de doses até abril. No entanto está parado em Pequim um carregamen­to de IFA para 18,3 milhões de injeções. Teme-se que o governo chinês crie obstáculos, assim como na Índia ou mesmo em retaliação pelos ataques do clã Bolsonaro, para liberar o produto estratégic­o.

A China fornece 35% dos insumos farmacêuti­cos utilizados no Brasil, e a Índia, outros 37%. Os dois países mais populosos do mundo podem bem decidir, pois, que têm prioridade na vacinação.

Só estão em solo brasileiro vacinas para dar duas doses a 5,4 milhões de pessoas. Com sorte, menos incúria e mais diplomacia, até abril seria factível obter o suficiente para proteger menos de um quarto da população —isso se não faltarem seringas, se a Saúde não ficar de novo sem ministro e se a logística de Pazuello enfim funcionar.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil