Folha de S.Paulo

Doria estadista?

- Guilherme Boulos Professor, militante do MTST e do PSOL. Foi candidato à Presidênci­a e à Prefeitura de São Paulo. Escreve às terças

A aprovação das vacinas pela Anvisa foi uma vitória da ciência contra o atraso. Vitória coletiva das instituiçõ­es públicas de pesquisa, representa­das pelo Butantan e pela Fiocruz. Vitória do SUS, representa­do por 12 mil profission­ais de saúde que participar­am dos testes.

É verdade que tivemos um início tardio. A enfermeira Mônica recebeu sua dose quando 35 milhões de pessoas já estavam imunizadas em 57 países. Numa situação única no mundo, o governo foi o principal adversário da vacinação. Bolsonaro se associou ao vírus em campanha pela morte. A única vacina contra o mal que ele causa é o impeachmen­t. Foi tão longe que permitiu a João Doria vender uma imagem de governante sensato, quase um estadista.

Nunca tive problemas para reconhecer méritos em adversário­s políticos. Doria teve um papel importante na defesa da vacina, em contrapont­o ao negacionis­mo. Mas uma sociedade sem memória perde seus pontos de referência. Nunca é demais lembrar o verão passado. Aliás nem precisamos ir tão longe. Há três meses, em plena pandemia, ele propôs cortar 30% do orçamento da Fapesp, principal órgão estadual de fomento à pesquisa científica. Pouco antes, no PL 529, propôs o confisco do fundo de reserva das universida­des públicas. Defesa da ciência?

O Doria que, no domingo, fez discurso emocionado em defesa da vida é o mesmo que na campanha de 2018 disse que “a polícia vai atirar para matar” e que, já como governador, parabenizo­u policiais por uma ação com 11 mortos em Guararema. O mesmo que vetou leis que previam uma política de combate à tortura e o funcioname­nto 24h das delegacias da mulher. Defesa da vida?

Se recuperarm­os sua atuação na prefeitura, podemos lembrar da farinata, composto de alimentos próximos ao prazo de validade que ele quis distribuir na merenda escolar. Na época, Doria chamou a ração de “produto abençoado”. Foi ainda na sua gestão que houve a acusação de que agentes municipais jogaram jatos de água em moradores de rua. Os mesmos sem-teto que ficaram à própria sorte em toda pandemia e não estão incluídos nas primeiras etapas do cronograma de vacinação estadual, apesar da completa vulnerabil­idade ao vírus por não poderem “ficar em casa”. Infelizmen­te, não existe vacina contra a desumanida­de.

Estamos todos aliviados com o início da vacinação, e não estou entre aqueles que acham que devemos escolher quem pode ou não estar junto na luta contra Bolsonaro. Mas reconhecer a curvatura da Terra não basta para tornar alguém um estadista nem apaga sua história. É essa miséria de perspectiv­as que nos ajudou a chegar até aqui. O Brasil pode muito mais.

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